1. Em busca de uma história mais verdadeira
Há 500 anos, quando a Europa fundamentalista se lançava ao mar para
conquistar novas terras, escravizando e exterminando povos indígenas e
negros, muitas vozes se levantaram para denunciar o mau uso da religião.
Mulheres e homens fizeram surgir, sob a ação do Espírito Santo,
movimentos que ajudaram a recuperar o sonho do cristianismo primitivo.
Entre todas essas vozes, uma das que mais ecoaram foi
a de um monge chamado Martinho Lutero. Com toda a sua fragilidade
humana, com seus erros e acertos, Lutero conseguiu mostrar à Igreja de
Cristo que estava na hora de "voltar a Jesus".
O papa Adriano VI, contemporâneo de Lutero, foi capaz de ler a ação do Espírito e assim escreveu a ele:
"Sabemos que, mesmo na Santa Sé, e desde muitos anos,
muitas abominações foram cometidas (...). Faremos tudo para começar a
reformar a corte de Roma, da qual veio todo o mal. É dela que sairá a
cura, como dela veio a doença".
Infelizmente, o sucessor de Adriano IV não teve a
mesma diplomacia. Lutero também foi se acirrando em suas posições e as
rupturas se acentuaram. Disputas posteriores aumentaram as rivalidades,
quase nunca permitindo, nem a católicos romanos nem a luteranos,
registros históricos menos tendenciosos. Para a maioria dos romanos,
Lutero transformou-se no semeador da discórdia, no culpado pelo
surgimento de "outras igrejas não fundadas por Jesus Cristo". Para boa
parte dos protestantes, Roma e seu poderio passaram a ser encarnação da
besta do Apocalipse.
A inquisição condenou à morte Joana D'Arc, em nome da
fé ela foi levada à fogueira. Mais tarde, a Igreja Romana reconheceu o
seu erro e elevou Joana D'Arc à honra dos altares. No caso da Reforma,
as feridas foram maiores, ainda não foi possível reconhecer todos os
erros, de um lado ou de outro.
Algumas afirmações, entretanto, não podem continuar
sendo repetidas. Não só por faltarem com a verdade, mas por não
contribuírem para a construção da tão sonhada unidade.
2. Lutero dividiu a Igreja?
No ano de 450, sob o pretexto das discussões se Jesus
tinha uma natureza (era só Deus) ou duas (a divina e a humana), houve a
separação da Igreja Siriana. Em 1054, a Igreja de Constantinopla e a
Igreja de Roma romperam as relações, excomungaram-se mutuamente,
declarando-se inimigas. Uma chaga que até hoje não se curou. Isto para
falar apenas das divisões maiores.
Cristãos e cristãs, de maneira geral, por
desconhecimento histórico, continuam a repetir que Lutero foi o
responsável pela divisão, sem reconhecer na verdade que, profeticamente,
o que fez foi trazer à tona a divisão já existente. E ainda que
acontecimentos posteriores viessem a provocar novas rupturas, é
importante recuperar sua intenção inicial.
Lutero não falava em separar-se da Igreja de Cristo,
mas em reformá-la. Daí o nome Reforma. Chegava aos seus ouvidos os mesmo
apelos proféticos que trezentos anos antes, moveram Francisco de Assis:
"Reconstrói a minha Igreja, que está em ruínas". E a reconstrução passa
pela busca da unidade. É por isso que o próprio Lutero assim orava a
Deus:
"Ó eterno e misericordioso Deus, Tu és do Deus da
Paz, do amor e da unidade e não da discórdia e da confusão, que permites
em teus justos julgamentos. Este mundo, ao se esquecer de Ti, tem se
dividido e quebrado. Só Tu podes criar e sustentar a unidade.
(...) Concede, então, que voltemos à tua unidade e
evitemos toda discórdia. E assim, sejamos de uma só vontade, um só
conhecimento, uma só disposição e uma só compreensão sobre o fundamento
de Jesus Cristo, nosso Senhor".
3. Lutero e a leitura da Bíblia
Também por desconhecimento, é costume ouvir,
especialmente no mundo católico romano, a afirmação de que Lutero tirou
sete livros da Bíblia. Isso não é verdade. Ao contrário, como grande
teólogo que era, Lutero impulsionou um grande movimento de leitura e
interpretação da Bíblia. A grande sede da Palavra de Deus foi diminuída
não só pelas traduções que fez (o povo não sabia grego e hebraico e nem
mesmo o latim), mas também pelos seus comentários exegéticos aos livros
sagrados. É bom lembrar que a tradição romana proibia o manuseio da
Bíblia para quem não fosse clérigo. Nem mesmo nos cursos de teologia
incentiva-se o estudo da Palavra de Deus.
Lutero traduziu todos os livros, incluindo em sua
edição também aqueles que não têm original em hebraico (chamados
apócrifos em ambiente protestante ou deuterocanônicos no mundo
católico). E não proibiu ninguém de utilizá-los.
Acontece que nem mesmo a Igreja de Roma tinha fechado
a questão acerca do cânon, isso se dá apenas em Trento (1545-1577).
Outros grupos reformados passarão a utilizar, como os judeus, apenas o
cânon hebraico, mas isso não vem de Lutero. Dele, o que precisamos
recuperar é o seu amor à Palavra de Deus.
4. Um bom conselho aos nossos governantes
Erasmo de Rotterdam, teólogo humanista muito admirado
por Lutero, criticou fortemente o reformador quando este apoiou as
atitudes dos príncipes alemães, que perseguiram com violência os
movimentos camponeses que exigiam seus direitos. Ele estaria legitimando
a opressão. Ora, o grande profeta da paz, Helder Câmara, apoiou o Golpe
Militar de 1964, percebendo depois o seu erro. E ainda vemos hoje
pastores e bispos apoiarem ações violentas contra os sem-terra.
Mas, se os príncipes alemães manipularam a intenção e
o movimento de Lutero, é porque não ouviram sua própria voz. Certa vez,
um príncipe pediu de Lutero alguns conselhos afim de que não agisse com
tirania em relação a seu povo. A resposta de Lutero foi simples e, se
fosse ouvida pelos governantes que se dizem donos do mundo, daria outros
rumo a esse momento tão delicado de nossa história. Lutero lhe enviou
como resposta um comentário ao Magnificat, com a seguinte introdução:
"Se queres ser um bom governante, aprende da Virgem Maria. Ninguém como
ela soube acreditar num Deus que derruba os poderosos de seus tronos e
eleva os humildes".
Façamos ecoar em nossos corações e em nossas relações o mesmo apelo! Só assim seremos capazes de reconstruir a unidade.
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