terça-feira, 27 de agosto de 2013

A FILOSOFIA POLÍTICA MODERNA E O CONCEITO DE ESTADO

1. O Estado Moderno

Em uma pesquisa antropológica visando encontrar as condições de formação do Estado,  buscando suas relações intrínsecas e extrínsecas com a organização humana, assim Lawrence Krader define
essa instituição política:

          "Na organização do Estado, o homem concentra seu poder sobre o homem em um  único cargo oficial. O monopólio da força física de que goza esse cargo é absoluto.  Pode, sem dúvida, canalizar seu poder mediante delegação específica; nos demais  casos, e desde que o Estado não seja derrubado, esse poder continua  a disposição da  autoridade  central. Em mãos do Estado o poder adota diversas formas e no uso de  suas atribuições pode proibir, matar, encarcerar, escravizar, multar. Mas as forças do  Estado não têm projeções meramente negativas. O Estado se apóia nas forças  integradoras da sociedade: o amor, a lealdade, a dependência recíproca, a fé religiosa,    a tradição e a força do costume.

          "Além disso, o Estado é uma autoridade central (monarca, presidente) com poder sobre uma população que vive dentro de um território determinado; mas é mais que uma unidade física, territorial ou legal; o poder político central transforma a unidade nacional, a representação, a defesa e o controle dessa unidade em uma ideologia. A invasão  do território de um Estado supõe uma dupla ameaça: de um lado a invasão diminui a área geográfica do Estado, e de outro, diminui o âmbito da autoridade  central e, portanto, o poder de que desfruta. Quando está em perigo a extensão geográfica de um Estado, se vê igualmente ameaçada a ideologia da unidade do Estado, o território do Estado e o povo. A lealdade ao Estado se baseia, em parte, na  aceitação de seu poder e na fé neste poder. A debilidade pode ser uma ameaça para essa fé ou, pelo contrário, pode ser que a debilidade do poder atraia para ele mais adesão do que nunca. Mas, em qualquer caso, o povo reage ao Estado e ao seu  destino, e não apenas à mera perda de população, território ou riqueza." 1

Podemos perceber, assim, que a institucionalização do Estado baseia-se em características básicas do homem enquanto indivíduo, para fazer dele membro efetivo de uma comunidade. Tal abertura política faz-se de tal maneira, que o membro de uma comunidade centralizada em um Estado é capaz de abdicar de si mesmo para defender não apenas as realidades que este Estado representa (o território, a riqueza ou a população) mas também a própria abstração da potência de todos centralizada em um único aparato político, o Estado enquanto tal.  Historicamente, vemos que o Estado, se não esteve sempre presente na organização humana 2, é uma constante à medida em que cresce o grau de abrangência populacional e conseqüente complexidade das organizações. Claro que assume as mais variadas formas, de acordo com as condições de cada tempo e lugar, dos Estados teocráticos e centralizados da antiguidade oriental aos Estados democráticos e mesmo totalitários de nossos dias. O fato é que o Estado tal qual conhecemos hoje, embora guarde profundas semelhanças com instituições políticas antigas, é fruto de um processo de formação que se inicia no final da Idade Média, com a dissolução do Estado teocrático feudal. Daremos ênfase aqui, muito mais conceitual do que histórica, àquele que convencionou-se chamar de Estado Moderno.

Entretanto, mesmo o Estado moderno apresenta variações, e o que conhecemos hoje é resultado de um processo de desenvolvimento ao longo dos séculos. O historiador alemão Werner Naef identifica três grandes tipologias no processo de desenvolvimento do Estado moderno: a primeira delas seria o Estado estamental, predominante durante os séculos XV e XVI, responsável pela concentração dos poderes políticos; a segunda seria caracterizada pelo Estado monárquico absoluto, que predomina nos séculos XVII e XVIII e representa uma segunda onda de centralização do poder, agora unicamente nas mãos do monarca; a terceira grande tipologia do Estado moderno é representada pelo Estado democrático, que começa a surgir com a Revolução Francesa e consolida-se com a fixação dos direitos do homem e do cidadão 3.

No aspecto conceitual que nos interessa mais diretamente, o Estado moderno dominou as preocupações filosóficas durante séculos, sensibilizando pensadores do calibre de Maquiavel e de Marx, por exemplo. De acordo com Norberto Bobbio, a filosofia política moderna e suas concepções de Estado e sociedade podem ser agrupadas em duas grandes vertentes, o modelo jusnaturalista e o modelo hegelo-marxiano, que se contrapõem um ao outro.

O jusnaturalismo abarca de Hobbes a Rousseau, passando por Locke, Spinoza e Kant; o modelo hegelo-marxiano, por sua vez, como já acena o próprio nome, abarca duas perspectivas que, mesmo sendo a segunda uma inversão da primeira, guardam entre si a identidade estrutural.

O que caracteriza o modelo jusnaturalista é, antes de tudo, o seu objetivo de desenvolver uma
teoria racional do Estado; se o modelo tradicional de concepção política que remonta a Aristóteles explicava o Estado como uma construção histórica, partindo de círculos menores (família, aldeia) para círculos cada vez mais abrangentes (a Pólis) que culminam no Estado, que é a forma mais perfeita de organização, os jusnaturalistas vão se dedicar a uma reconstrução racional, buscando hipóteses de trabalho que permitam a percepção do sentido do Estado. Assim, ele aparece como a reunião de muitos indivíduos que formam um indivíduo único, com uma única vontade, expressão da vontade geral:

          "O Estado não é como uma família ampliada, mas como um grande indivíduo, do qual são partes indissociáveis os pequenos indivíduos que lhe dão vida: basta pensar na  figura posta no frontispício do Leviatã, na qual se vê um homem gigantesco (com a coroa na cabeça e, nas duas mãos, a espada e o báculo, símbolo dos dois poderes), cujo corpo é composto de vários homens pequenos. Rousseau expressa o mesmo conceito ao definir o Estado como o 'eu comum', imagem muito diversa da de 'pai comum'. Na base desse modelo, portanto, está uma concepção individualista do Estado, por um lado, e, por outro, uma concepção estatista (que significa racionalizada) da sociedade. Ou os indivíduos sem Estado, ou o Estado composto apenas de indivíduos. Entre os indivíduos e o Estado, não há lugar para intermediários. E também essa é uma extrema simplificação dos termos do problema, à qual conduz inevitavelmente uma constituição que quer ser racional e, enquanto tal, sacrifica em  nome da unidade as várias e diferentes instituições produzidas pela irracionalidade da história; mas é também, ao mesmo tempo, o reflexo do processo de concentração do poder que marca o desenvolvimento do Estado moderno. Uma vez constituído o Estado, toda outra forma de associação, incluída a Igreja, para não falar das corporações ou dos partidos ou da própria família, das sociedades parciais, deixa de  ter qualquer valor de ordenamento jurídico autônomo." 5

O ponto chave do modelo jusnaturalista é o da legitimidade do poder político do qual é detentor o Estado; se no modelo aristotélico tradicional a legitimidade vem da natureza (sendo o Estado
resultado do crescimento de esferas sociais menores, desde a família, a legitimidade é dada pelo pátrio poder: o soberano assume para os súditos a figura de pai) agora isso já não é mais possível. Se a legitimidade não é natural, é necessário que se encontre uma forma pela qual ela seja aceita por aqueles que se submetem. Em outras palavras, é necessário que haja um consentimento dos súditos para com a autoridade do Estado:

          "Isso significa dizer que o governante, ao contrário do pai e do dono de escravos, necessita que sua própria autoridade obtenha consentimento para que seja considerada como legítima. Em princípio, um soberano que governa como um pai,  segundo o modelo do Estado paternalista, ou, pior ainda, como um senhor de        escravos segundo o modelo do Estado despótico, não é um governo legítimo e os           súditos não são obrigados a lhe obedecer." 6

A hipótese racional encontrada pelos filósofos deste modelo está na noção de pacto ou contrato social 7. A idéia do pacto entre os indivíduos para constituir o Estado, cada um deles delegando e abdicando de sua própria autoridade em nome da autoridade única do soberano que é, ele próprio, um indivíduo, é o centro das teorias contratualistas do jusnaturalismo. O contrato social marca, fora do tempo e do espaço, a transição do estado de natureza para o estado civil; o contrato social é o pacto civilizador que faz a ponte conceitual entre a barbárie e a civilização.

Antes do Estado não há sociedade 8 ; no estado de natureza os homens não passam de indivíduos, não constituem uma comunidade. Em guerra de todos contra todos (Hobbes) ou não (Rousseau), no estado de natureza a articulação social não é possível. Já no estado civil - ou seja, com a instituição do Estado - os homens passam a viver em comunidade, na qual adquirem certos direitos, desde que cumpram seus deveres para com os outros e para com o Estado. Estado de natureza e  estado civil são antagônicos e mutuamente excludentes:

          "Entre os dois estados, há uma relação de contraposição: o estado natural é o estado não político, e o estado político é o estado não natural. Em outras palavras, o estado político surge como antítese do estado natural, do qual tem a função de eliminar os defeitos, e o estado natural ressurge como antítese do estado político, quando este deixa de cumprir a finalidade para a qual foi instituído. A contraposição entre os dois estados consiste no fato de serem os elementos constitutivos do primeiro indivíduos singulares, isolados, não associados, embora associáveis, que atuam de fato seguindo  não a razão (que permanece oculta ou impotente), mas as paixões, os instintos ou os  interesses; o elemento constitutivo do segundo é a união dos indivíduos isolados e dispersos numa sociedade perpétua e exclusiva, que é a única a permitir a realização  de uma vida conforma a razão. Precisamente porque estado de natureza e estado civil são concebidos como dois momentos antitéticos, a passagem de um para outro não ocorre necessariamente pela força das coisas, mas por meio de uma ou mais       convenções, ou seja, por meio de um ou mais atos voluntários dos próprios indivíduos interessados em sair do estado de natureza, ou seja, em viverem conforme a razão." 9

O que fundamenta o Estado é, pois, na visão dos jusnaturalistas, o desejo dos indivíduos de viverem de acordo com a razão - o que vai de encontro com sua perspectiva de produzir uma teoria racional do Estado - e não mais de acordo com os instintos, paixões e interesses puramente individuais e egoístas. Acontece que a instituição do Estado traz um sério problema: como conciliar o bem individual da liberdade com a necessária obediência que cada um dos indivíduos deve prestar ao Estado? 10

Vejamos, brevemente, algumas considerações dos principais filósofos jusnaturalistas sobre a
questão. 

Hobbes: O Estado como segurança

Para Thomas Hobbes, o primeiro grande filósofo contratualista, essa questão não se coloca: o indivíduo assume uma renúncia quase total11 , prestando obediência ao soberano instituído pelo pacto em nome de sua segurança. Tal abdicação da liberdade deve-se à concepção de Hobbes do estado de natureza: a guerra total, a luta generalizada (bellum omnium contra omnes), que dá-se por ser o homem, naturalmente, o lobo do homem (homo homini lupus).

A reflexão do filósofo é bastante curiosa: por natureza, todos os homens são absolutamente iguais, nada há que os diferencie e, portanto, um jamais poderá ter poderes sobre os outros12 : dessa igualdade total advém a desconfiança e, dela, a guerra. A guerra decorre do fato de que um indivíduo precisa atacar o outro, seja para vencê-lo seja para evitar, de antemão, que seja por ele atacado. Numa tal situação, a guerra que, em princípio é racional, torna-se absurda, pois não há vencedor(es) possível(eis). Numa tal guerra não existem também injustiças, posto que onde não impera a lei não é possível a definição do que é justo; ainda por outro lado, neste estado de natureza a propriedade tampouco é possível, pois não há como conseguir e defender coisas em meio a uma guerra de todos contra todos. Assim, determinadas paixões humanas fazem com que a razão institua o Estado13.

É no capítulo XVII do Leviatã que Hobbes define a constituição do Estado através de um pacto
entre os indivíduos no qual eles consentem em abdicar de suas vontades e liberdade individuais em nome da vontade de um único, que garantirá a paz através da lei e a segurança de todos os súditos. O homem não é um animal naturalmente social; a sociedade entre nós é instituída artificialmente e precisa ser artificial e racionalmente mantida: o pacto precisa ser renovado e garantido a cada momento, para que haja sociedade. Daí decorre que o poder político só pode ser mantido através da força. A esse monopólio da força que faz com que a multidão se una num único indivíduo, que garantirá a segurança de todos, Hobbes chama Estado.

          "A única maneira de instituir um tal poder comum, capaz de defendê-los das invasões dos estrangeiros e das injúrias uns dos outros, garantindo-lhes assim uma segurança suficiente para que, mediante seu próprio labor e graças aos frutos da terra, possam alimentar-se e viver satisfeitos, é conferir toda sua força e poder a um homem, ou a uma assembléia de homens, que possa reduzir suas diversas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade (...) Feito isso, à multidão assim unida numa só pessoa se  chama Estado, em latim civitas." 14

Assim, o medo da morte e o desejo de posse fazem com que os indivíduos ajam racionalmente e instituam, através do pacto, um poder político que os submeterá a todos, mas garantirá o seu direito de posse e sua segurança física. Abdica-se da liberdade em nome da segurança; troca-se a liberdade pela vida, enfim. 
 

Locke: o Estado como garantia da propriedade

John Locke também lança mão da hipótese do estado de natureza para a construção de sua filosofia política. Contrariamente a Hobbes, porém, não vê nesse estado uma guerra permanente; segundo este filósofo, o fato de os homens viverem na mais absoluta liberdade não implica em que vivessem sem leis. No estado de natureza os homens seriam governados pela lei natural da razão, sendo seu princípio básico a preservação da vida; não se sairia agredindo e matando os outros indistintamente, portanto, apenas para tirar-lhes as propriedades ou evitar um possível ataque.

Já no estado de natureza os homens estão aptos a possuir bens; de acordo com Locke, todo indivíduo já nasce proprietário de seu corpo e de sua capacidade de trabalho. Tudo aquilo que produzir, retirando ou transformando a natureza, através de seu próprio trabalho, será de sua propriedade:

          "O trabalho de seu corpo e a obra de suas mãos, pode dizer-se, são propriamente dele. Seja o que for que ele retire do estado que a natureza lhe forneceu e no qual o  deixou, fica-lhe misturado ao próprio trabalho, juntando-se-lhe algo que lhe pertence, e, por isso mesmo, tornando-o propriedade dele. Retirando-o do estado comum em que a natureza o colocou, anexou-lhe por esse trabalho algo que o exclui do direito comum de outros homens. Desde que o trabalho é propriedade exclusiva do trabalhador, nenhum outro homem pode ter direito ao que se juntou, pelo menos quando houver bastante e igualmente de boa qualidade em comum para terceiros." 15

Mas se em seu estado natural os homens, além de gozarem da plena e absoluta liberdade, podem ainda ter acesso quase ilimitado à propriedade, o que faz com que eles abandonem esse estado, instituindo a sociedade civil?

Acontece que o produto do trabalho humano e o acesso à propriedade vão se complexificando
paulatinamente; chega um momento em que há a necessidade de se arbitrar sobre esse direito, dadas as disputas que começam a surgir. Se todos são iguais, quem é o verdadeiro proprietário? Se todos são iguais, quem pode arbitrar essa questão? Se todos são iguais, como pode ser feita a justiça?

Assim, os homens reúnem-se em comunidade com o objetivo de facilitar a fruição do direito de propriedade que, mesmo possível em estado natural é incerta e insegura. Afirma o filósofo que "o objetivo grande e principal, portanto, da união dos homens em comunidade, colocando-se eles sob governo, é a preservação da propriedade." 16

O que institui a sociedade civil e o Estado para realizar a função do arbítrio e da defesa do direito à propriedade para todos é, como em Hobbes, um pacto entre os homens, entre os indivíduos que comporão a assim criada comunidade. O consentimento dos homens na instituição da comunidade, porém, difere entre os dois filósofos britânicos: para Hobbes, o contrato é um pacto de submissão que visa a instaurar uma situação contrária àquela que vigorava no estado de natureza, preservando a segurança de suas vidas; para Locke, ao contrário, o contrato apresenta-se como um pacto de consentimento em que os indivíduos, longe de submeterem-se todos a um poder comum, concordam em instituir leis que preservem e garantam tudo aquilo que eles já desfrutavam no estado de natureza. O contrato social é para Locke, a garantia dos direitos naturais, e não a criação de outros direitos 17.

Para falar sobre as características do contrato que institui a sociedade política, Locke ampara-se nas características de uma associação civil, como é o casamento 18. No casamento, dois indivíduos consentem na união e só por isso ela é possível. Também assim acontece com o Estado: ele só é possível através do consentimento de todos os indivíduos em sua instauração.

          "Sendo os homens, conforme acima dissemos, por natureza, todos livres, iguais e independentes, ninguém pode ser expulso de sua propriedade e submetido ao poder político de outrem sem dar consentimento. A maneira única em virtude da qual uma  pessoa qualquer renuncia à liberdade natural e se reveste dos laços da sociedade civil consiste em concordar com outras pessoas em juntar-se e unir-se em comunidade para viverem com segurança, conforto e paz umas com as outras, gozando garantidamente das propriedades que tiverem e desfrutando de maior proteção contra quem quer que não faça parte dela(...) Quando qualquer número de homens consentiu  desse modo em constituir uma comunidade ou governo, ficam, de fato, a ela  incorporados e formam um corpo político no qual a maioria tem o direito de agir e  resolver por todos." 19

Sem deter-mo-nos aqui nas formas expostas por Locke pelas quais se dá esse governo da maioria, devemos reiterar que para ele não há, na verdade, renúncia à liberdade, mas sim a instauração de uma nova modalidade dela, a liberdade civil, que não se contrapõe à liberdade natural, mas a preserva e a alarga. Preservando os direitos naturais ao torná-los políticos, o Estado não é segundo esse filósofo, um "mal necessário", mas a realização dos direitos humanos através do arbítrio do direito de propriedade, fazendo de todos felizes possuidores.

 

Rousseau: o Estado como promotor da "vontade geral"

O filósofo genebrino Jean-Jacques Rousseau pode ser visto como um opositor de Hobbes. Enquanto o este concebia o estado natural como guerra e o estado social como fonte de segurança individual, Rousseau afirmava o estado natural como fonte da liberdade e da igualdade, sendo essencialmente bom, enquanto que a sociedade política era a fonte da guerra, posto que instaurava a desigualdade entre os homens.

Em seu famoso Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens (1754/55), esse filósofo identifica o estado de natureza com a "idade do ouro", quando os homens eram todos livres e iguais entre si, vivendo em paz e harmonia. A origem da propriedade é também a origem da desigualdade, pois as diferenças naturais não devem ser levadas em conta, mas apenas aquela que instaura uma desigualdade de fato, que é a desigualdade social que aí se origina. A origem da propriedade é também a origem da sociedade, pois "o verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo." 20

Com a propriedade, vem também o processo de acumulação de bens e, se uns acumulam, isso
implica em que outros deixem de acumular. A propriedade é fonte das desigualdades, fonte da escravidão, da ganância e da violência e também é fonte da civilização. O contrato social que institui o Estado é visto por Rousseau não como resultado da ação de todos os indivíduos, como o viam Locke e Hobbes, mas como a ação dos indivíduos ricos coagindo aos mais pobres, na tentativa de garantir para si as benesses da propriedade 21.

Rousseau antecipa, assim, a visão do Estado como um instrumento de classe que seria enunciada por Marx no século seguinte, como veremos mais adiante. Entretanto, o revolucionário filósofo não considera a instituição política como essencialmente má, defensora de interesses individuais; a sociedade não é contrária ao estado natural, como queria Hobbes e, portanto, o Estado poderia ser organizado de forma a preservar os direitos naturais e a igualdade entre os indivíduos - a que fatalmente chegaria Locke, não fosse sua defesa intransigente do direito de propriedade.

Encantado com a "idade de ouro" do estado natural, mas defensor da civilização, Rousseau dedica-se a encontrar as formas de organizar os indivíduos socialmente de modo que sejam preservados seus direitos e características naturais, de modo a que o homem não se corrompa
como nessa sociedade essencialmente má, na qual, apesar de "nascer livre, encontra-se sempre a ferros". Esse processo civilizador será examinado em Do Contrato Social.

Para que possa ser garantia da igualdade, sem alienar a liberdade humana, o pacto social deve
abranger a todos os indivíduos. Ninguém pode ficar de fora pois, nesse caso, estabelecer-se-ia já uma desigualdade que corromperia a sociedade assim instituída. Diferentemente de Hobbes, o conjunto dos indivíduos não abdica de sua liberdade em nome de um único indivíduo, ao qual se submete, mas entrega a si mesmo ao controle de um indivíduo coletivo que é formado pela união de todos os que pactuam ao firmar o contrato social.

          "Enfim, cada um dando-se a todos não se dá a ninguém e, não existindo um associado  sobre o qual não se adquira o mesmo direito que se lhe cede sobre si mesmo, ganha-se o equivalente a tudo que se perde, e maior força para conservar o que se  tem.

          "Se separar-se, pois, do pacto social aquilo que não pertence a sua essência, ver-se-á que ele se reduz aos seguintes termos: 'Cada um de nós põe em comum sua pessoa e todo o seu poder sob a direção suprema da vontade geral, e recebemos, enquanto corpo, cada membro como parte indivisível do todo´." 23

A celebração de tal pacto dá origem a um corpo social, o Estado, que nada mais é do que a união de todos os indivíduos pactuantes num único indivíduo social; soberano aqui, não é o monarca como em Hobbes, mas o próprio Estado enquanto união dos indivíduos. Isto é, o todo é soberano com relação a cada uma das partes, todas elas iguais entre si. O filósofo prossegue:

          "Imediatamente, esse ato de associação produz, em lugar da pessoa particular de cada contratante, um corpo moral e coletivo, composto de tantos membros quanto  são os votos da assembléia, e que, por esse mesmo ato, ganha sua unidade, seu eu  comum, sua vida e sua vontade. Essa pessoa pública, que se forma, desse modo, pela  união de todas as outras, tomava antigamente o nome de cidade e, hoje, o de república ou de corpo político, o qual é chamado por seus membros de Estado quando passivo, soberano quando ativo, e potência quando comparado a seus  semelhantes." 24

Deste modo, não há, em Rousseau, abdicação da liberdade para a instituição do Estado, posto que este nada mais é do que a reunião do conjunto dos indivíduos e deve ser a expressão da vontade geral, isto é, a resultante das vontades individuais no que diz respeito às questões comuns e coletivas. Como na perspectiva deste filósofo a soberania não é do governo - os ocupantes da máquina administrativa - mas do povo enquanto conjunto dos indivíduos pactuantes, não há nunca submissão individual, pois no Estado se realiza a igualdade política de cada indivíduo, assim como sua liberdade se realiza ao obedecer a leis criadas por ele mesmo que não são jamais leis de exceção impostas por outrem.

 

O Modelo Hegelo-Marxiano

Se o modelo jusnaturalista tinha em sua essência a oposição estado natural versus estado civil, este novo modelo, embora rompendo essa dicotomia, baseia-se numa outra oposição: sociedade civil versus sociedade política 25. Norberto Bobbio afirma, entretanto, que Hegel deve ser visto como o coroamento do jusnaturalismo, pois se entendemos esse modelo como a busca da concepção do Estado-razão, é em Hegel que ele a encontra de forma mais elaborada. Por outro lado, ele é também o maior crítico do jusnaturalismo, recolocando a questão em novos termos.

          "Com Hegel, o modelo jusnaturalista chegou à sua conclusão. Mas a filosofia de Hegel é não apenas uma antítese, mas também uma síntese. Tudo o que a filosofia política do jusnaturalismo criou não é expulso do seu sistema, mas incluído e superado (o mesmo ocorre com o conjunto dos conceitos herdados através do modelo aristotélico)." 26

O modelo hegelo-marxiano só se constituirá como verdadeira antítese ao jusnaturalismo ao incorporar, sobre a estrutura pensada por Hegel, as considerações levantadas mais tarde por Marx, que retoma a concepção de Rousseau do Estado como instrumento de dominação para a manutenção da riqueza de alguns em detrimento de muitos outros, mas tomando essa característica como essencial e inerente ao conceito mesmo de Estado e não como uma corrupção contingente do conceito, como para o filósofo genebrino.

A primeira grande diferença de Hegel com os jusnaturalistas diz respeito à história: enquanto os filósofos que pensavam o Estado como resultado de um pacto social o estado natural era uma hipótese de trabalho que se colocava fora da história e para além de qualquer perspectiva histórica, o que equivale a afirmar que o Estado não tem história ou, pelo menos, que a história não é fundamental para sua elucidação conceitual, para o filósofo alemão o Estado só pode ser
compreendido em sua perspectiva histórica, ela é a chave para sua apreensão. Numa das passagens da Filosofia do Direito, ele critica essa perspectiva de criticar a realidade através da
concepção de um "Estado Ideal":

          "(...) conquistando o poder, estas abstrações produziram por um lado o espetáculo  mais grandioso jamais visto pela história humana: recomeçar a priori, e pelo pensamento, a constituição de um grande Estado real, subvertendo tudo o que existe e é dado, querendo dar-lhe como fundamento um sistema social imaginado; de outra parte, como não são senão abstrações sem Idéia, engendraram, nesta tentativa, os  acontecimentos mais horríveis e os mais cruéis." 27

Contrariando a Rousseau e aos jusnaturalistas em geral, Hegel considera não que os indivíduos constituam o Estado, mas que, ao contrário, os indivíduos só são possíveis no e através do Estado:

          "O Estado é 1) primeiramente a sua formação interna, como desenvolvimento que se refere a si mesmo - o direito interno dos Estados ou a Constituição. É depois 2) o  indivíduo particular, e por conseguinte em relação com outros indivíduos particulares - o que dá lugar ao direito externo dos Estados. Mas 3) esses espíritos particulares são  apenas momentos no desenvolvimento da idéia universal do espírito na sua realidade; e esta é a história do mundo, ou história universal."28

Percebe-se, pois, que para Hegel a racionalidade está no próprio Estado, que "é a substância ética consciente de si" 29 e condição da racionalidade dos indivíduos e não na decisão destes de abdicar do estado de natureza instituindo a sociedade política. Feitas estas considerações, podemos passar para a questão central deste modelo que é, como já foi dito, a oposição sociedade civil versus Estado (ou sociedade política).

Hegel é o primeiro filósofo da política a fazer esta distinção, na Filosofia do Direito, onde demonstra que uma coisa é a esfera social que trata dos interesses comunitários porém privados, outra é a esfera social que trata dos interesses comunitários e comuns a todos os indivíduos. Assim Gildo M. Brandão define essas duas esferas na perspectiva de Hegel:

          "A sociedade civil (Bürgerliche Gesellschaft) é definida como um sistema de           carecimentos, estrutura de dependências recíprocas onde os indivíduos satisfazem as suas necessidades através do trabalho, da divisão do trabalho e da troca; e asseguram a defesa de suas liberdades, propriedades e interesses através da administração da justiça e das corporações. Trata-se da esfera dos interesses privados,  econômico-corporativos e antagônicos entre si.

          "A ela se contrapõe o Estado político, isto é, a esfera dos interesses públicos e universais, na qual aquelas contradições estão mediatizadas e superadas. O Estado não é, assim, expressão ou reflexo do antagonismo social, a própria demonstração  prática de que a contradição é irreconciliável, como dirá mais tarde Engels, mas é esta divisão superada, a unidade recomposta e reconciliada consigo mesma. A marca distintiva do Estado é esta unidade, que não é uma unidade qualquer, mas a unidade  substancial que traz o indivíduo à sua realidade efetiva e corporifica a mais alta  expressão da liberdade."30

A concepção marxiana desta oposição fundamental aparece de forma bastante clara no prefácio à obra que seria o germe de O Capital, a Contribuição à Crítica da Economia Política:

          "Minha investigação desembocou no seguinte resultado: relações jurídicas, tais como  formas de Estado, não podem ser compreendidas nem a partir de si mesmas, nem a partir do assim chamado desenvolvimento geral do espírito humano, mas, pelo contrário, elas se enraízam nas relações materiais de vida, cuja totalidade foi resumida por Hegel sob o nome de 'sociedade civil' (Bürgerliche Gesellschaft), seguindo os ingleses e franceses do século XVIII; mas que a anatomia da sociedade burguesa (Bürgerliche Gesellschaft) deve ser procurada na Economia Política (...): na produção social da própria vida, os homens contraem relações determinadas, necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção estas que correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade destas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência.  O modo de produção da vida material condiciona o processo em geral de vida social,  político e espiritual." 31

Assim, a sociedade civil é anterior e determinante da estrutura do Estado: a política depende da economia de uma sociedade, na clássica formulação de Marx. Invertendo a concepção de Hegel, de que o Estado é determinante da história, Marx afirma que é a história da produção social dos homens, ao contrário, que determina a estrutura do Estado. Buscando na história da humanidade, Marx perceberá que em momento algum o Estado foi o representante dos interesses coletivos, nem tampouco o promotor de uma "vontade geral"; ao contrário, o Estado foi sempre aquilo que já havia denunciado Rousseau, um instrumento nas mãos de um determinado grupo social, usado para conquistar e manter determinados privilégios.

Esta concepção marca o divórcio da sociedade civil com o Estado: este está acima dela e, embora por ela determinado, tem um grau de independência que lhe permite fixar regras e leis de modo a perpetuar essa mesma sociedade civil, mantendo os privilégios e infortúnios desta dada organização social. A liberdade é, pois, impossível dentro dos limites do Estado. Contrário a Rousseau e selando o rompimento com o jusnaturlismo, Marx vê no Estado uma forma necessária apenas para as organizações sociais de exploração e afirma que apenas a extinção do Estado poderá dar origem à verdadeira história humana, o reino da liberdade sonhado por Rousseau. A realização da sociedade humana passa, pois, pela destruição do Estado, e não por sua instituição, como pensavam os filósofos jusnaturalistas.

Concluindo, o conceito de Estado moderno é resultado de um longo processo de elaboração
filosófica que acompanha a constituição histórico-social do Estado-nação, da dissolução do Estado teológico medieval até o pretenso Estado democrático de nossos dias, passando pelas monarquias absolutas e pelas revoluções liberais. Da busca de um Estado-razão pelos jusnaturalistas à concepção marxiana de um Estado como superestrutura da organização econômica da sociedade, passou-se do conceito de um Estado "instituidor-instituído" da sociedade para o conceito de um Estado que não se identifica diretamente com a sociedade, sendo mesmo um reflexo dela.

A relação dialética de mútua influência do Estado com a sociedade civil é exposta de forma muito simples e clara pelo economista Luis Carlos Bresser Pereira:

          "Compreendido nestes termos, o Estado é, assim, um sistema de poder organizado que se relaciona dialeticamente com outro sistema de poder difuso mas efetivo – a sociedade civil. A sociedade civil é, em última análise, a forma pela qual a classe dominante (ou as classes dominantes) se organiza(m) fora do Estado para controlá-lo  e pô-lo a seu serviço. A sociedade civil não se confunde portanto com a população  ou com o povo. O Estado exerce seu poder sobre a sociedade civil e sobre o povo. Por outro lado, a sociedade civil é fonte de poder do Estado e ao mesmo tempo estabelece limites e condicionamentos para o exercício desse poder." 32

As relações de força no jogo de poder entre Estado e sociedade civil são melhor delimitadas mais adiante:

          "O Estado se democratiza na medida em que a sociedade civil amplia suas bases e eventualmente inclui nelas os trabalhadores e portanto todo o povo. É também condição para a democratização do Estado que este fique sob controle da sociedade civil assim ampliada e não vice-versa. Na realidade ocorrerá um processo dialético entre a sociedade civil e o Estado, um controlando o outro e vice-versa. Ao mesmo tempo em que nas sociedades capitalistas modernas amplia-se a base da sociedade  civil, com uma participação crescente, ainda que nitidamente subordinada, dos trabalhadores, amplia-se também o próprio aparelho do Estado. E ao ampliar-se o  aparelho do Estado, tende ele a ganhar ou pretender ganhar autonomia em relação à  sociedade civil." 33

          



2. O Estado Capitalista

O Estado moderno, cuja conceituação vimos explanando, cristaliza-se historicamente no Estado capitalista; não seria exagero afirmar que a busca iniciada por Maquiavel de descrever a política como ela realmente é, em oposição às utopias normativas clássicas que remontam à Aristóteles e a Platão, são esforços no sentido de conceituar esse Estado nascente que se desenvolve paulatinamente. Boa parte desta busca seria sistematizada por Marx no século dezenove com suas análises econômicas e políticas do capitalismo. Como as conceituações filosófico-políticas não são construídas no vazio das abstrações puras, mas em relação direta com as condições materiais experimentadas, traçaremos agora algumas das características que o Estado capitalista assume ao longo da história.

O Estado capitalista, desde suas formas mais arcaicas, constitui-se a partir e através da derrocada do Estado feudal. Como fruto e instrumento de uma nova organização sócio-econômica, abandona e mesmo contrapõe-se a muitas das características daquela estrutura política que ele vem a substituir; por outro lado, muitas das características dos antigos sistemas políticos persistem, mascaradas ou não, na estrutura do Estado capitalista. Essa característica já era percebida por Tocqueville ainda na primeira metade do século dezenove, quando ele afirmava que as sociedades democráticas modernas substituíam a sociedade hierárquica antiga, mas que nem por isso substituíam ou aboliam a hierarquia mesma. Isso pode ser notado, por exemplo, em O Antigo Regime e a Revolução, quando ele fala da situação das transformações sociais e políticas na Inglaterra.

          "Na Inglaterra, onde à primeira vista se poderia dizer que a antiga constituição da  Europa se encontra ainda em vigor, ocorre a mesma coisa. Se esquecermos os velhos  omes e descartarmos as velhas formas, perceberemos que desde o século XVII o  sistema feudal fora aí abolido em sua substância: as classes que se mesclam entre si,  uma nobreza apagada, uma aristocracia aberta, a riqueza transformada em poder, igualdade perante a lei, igualdade dos encargos, liberdade de imprensa e debates públicos. Todos princípios novos e desconhecidos pela sociedade da Idade Média.  Ora, foram precisamente essas novidades que, introduzidas lenta e habilmente num  velho corpo, o reanimaram sem o risco de dissolvê-lo e, embora mantendo suas  formas antigas, deram-lhe um novo vigor. No século XVII, a Inglaterra já é, no seu todo, uma nação moderna, com a peculiaridade de haver preservado, como se fossem  embalsamados, alguns restos da Idade Média." 34

Embora seja um aristocrata que argumenta no sentido de resgatar determinados privilégios abolidos durante a Revolução em França, a argúcia de Tocqueville identifica que as mudanças ainda que profundas, rompem com uma certa estrutura, mas não com a estrutura mesma; isto é, o Estado muda de mãos e de feições, mas continua Estado e, portanto, atrelado a uma certa estrutura política que deve privilegiar a dominação, seja ela qual for. Essa mudança no tipo de dominação - absolutista ou democrática, mas ainda dominação - é melhor tratada ao longo de uma outra obra do filósofo francês, A Democracia na América. A citação é um pouco longa, mas necessária para que seja possível acompanhar a estrutura de sua argumentação:

          "Se quisesse imaginar com que traços novos o despotismo poderia produzir-se no  mundo, veria uma multidão incontável de homens semelhantes e iguais, que se movem  sem cessar para alcançarem pequenos e vulgares prazeres, de que enchem a própria alma. Cada um deles, separado dos outros, é como que estranho ao destino de todos  eles: seus filhos e amigos particulares formam, para ele, toda a espécie humana;  quanto ao restante de seus concidadãos, está ao lado deles, mas não os vê; toca-os, mas não os sente; só existe em si mesmo e para si mesmo e, se lhe resta ainda uma família, pode-se dizer que não tem mais pátria.

          "Acima desses homens erige-se um poder imenso e tutelar que se encarrega sozinho de assegurar-lhes os prazeres e de velar-lhes a sorte. Este poder é absoluto, minucioso, regular, previdente e suave. Assemelhar-se-ia ao poder paterno, e, com ele, teria como objetivo preparar os homens para a idade viril; mas, ao contrário,  procura mantê-los irrevogavelmente na infância; tem prazer em que os cidadãos se  regozijem, desde que não pensem em outra coisa.(...)"

          "Após ter assim tomado em suas mãos poderosas cada indivíduo e após ter-lhes dado a forma que bem quis, o soberano estende os braços sobre toda a sociedade;  cobre-lhe a superfície com uma rede de pequenas regras complicadas, minuciosas e  uniformes, através das quais os espíritos mais originais e as almas mais vigorosas não  conseguiriam aparecer para sobressair na massa; não dobra as vontades, amolece-as,  inclina-as e as dirige; raramente força a agir, mas opõe-se freqüentemente à ação; não destrói, impede o nascimento; não tiraniza, atrapalha, comprime, enerva, arrefece,  embota, reduz, enfim, cada nação a nada mais ser que uma manada de animais tímidos e industriosos, cujo pastor é o governo." 35

Tocqueville demonstra, assim, que mesmo o Estado que se coloca como democrático e igualitário é ainda uma forma de dominação; quiçá uma dominação ainda mais terrível, por ser mais velada e estar apoiada em características bastante profundas do ser humano, como a fuga da responsabilidade: se existe algo ou alguém que nos protege e faz por nós, sem que tenhamos - aparentemente - que nos submeter, por que não aceitar de bom grado? É certo que o aristocrata francês está falando contra o princípio da igualdade, que do seu ponto de vista seria o responsável por essa uniformização que possibilitaria tal tipo de dominação; atirando num alvo, acerta, porém, em outro: o Estado moderno "democrático" continua sendo Estado, afastado da sociedade e instrumento de dominação, o que equivale a dizer que a igualdade por ele criticada é apenas jurídica, não existindo de fato, pois se há uma classe de políticos e/ou funcionários que está acima da sociedade, já existe uma diferença de classes e está sepultada, na prática, qualquer perspectiva de igualdade. Seria preciso, porém, ainda um par de décadas para que Marx denunciasse a farsa da igualdade da democracia capitalista, apesar dos inegáveis avanços políticos que ela representa com relação a formas políticas anteriores.

É importante salientar, voltando à nossa linha de raciocínio, que mesmo no Estado Absolutista que, a rigor, é ainda uma formação pré-capitalista, já estão presentes características que culminariam nessa forma mais desenvolvida do Estado moderno. Para tocar em dois pontos apenas, mas que  são fundamentais, devemos lembrar que Hobbes, um dos principais teóricos do Absolutismo advogava que a constituição do Estado devia-se a uma busca de segurança vital e segurança do direito de propriedade, o que é já um prenúncio dos interesses capitalistas que tomavam forma aos poucos e ganhavam cada vez mais importância social.

Um segundo ponto, ainda mais fundamental, é que o processo analisado por Marx no livro primeiro d' O Capital no capítulo denominado A Chamada Acumulação Primitiva, que seria a base sobre a qual se ergueria o sistema capitalista de produção, acontece principalmente durante a existência do Estado Absolutista, principalmente durante o Mercantilismo e a Revolução Comercial.

A instituição do Estado capitalista traz uma inovação no campo econômico em relação aos sistemas anteriores: a apropriação do excedente econômico pela classe dominante não se dá mais através da utilização direta da força do Estado, através de tributos ou da escravização, mas sim através dos mecanismos do mercado, via aquela sutil violência expropriadora que Marx descobriu e a qual chamou mais-valia. É novamente Bresser Pereira quem vem em nosso auxílio:

          "A mais-valia é apropriada pelo capitalista através da troca de bens e serviços de acordo com seus respectivos valores. Se toda mercadoria tem seu valor correspondente à quantidade de trabalho socialmente necessário para produzi-la, e se no capitalismo o trabalho também é uma mercadoria como qualquer outra, as leis do mercado indicam que se deve pagar pelo trabalho apenas o correspondente ao custo de sua reprodução social. O preço da mercadoria força de trabalho, ou seja, o salário, não depende do que o trabalhador produz, mas de seu custo de reprodução.  Logo, basta ao capitalista escolher bens para serem produzidos que tenham uma quantidade de trabalho neles incorporada maior do que o respectivo salário para que  se produza uma mais-valia, depois de todos terem sido pagos exatamente de acordo  com os respectivos valores. Desta forma, o capitalista, baseado na propriedade dos  meios de produção e na redução dos trabalhadores à condição de trabalhadores  assalariados, apropria-se da mais-valia, sob a forma de lucros, juros, aluguéis e, ao  mesmo tempo, pode afirmar que todas as trocas realizadas no mercado foram feitas  exatamente de acordo com os respectivos valores. A violência direta para apropriação do excedente, com a utilização do poder do Estado, tornava-se  desnecessária." 36

É essa peculiaridade intrínseca e particular do sistema capitalista de produção que permite a gênese de um novo Estado, em substituição ao Estado Absolutista que havia garantido as condições necessariamente totalitárias que permitiram a primitiva acumulação de capital sem a qual o capitalismo não teria como constituir-se em modo de produção socialmente dominante.

O novo Estado que surge é o Liberal, aquele que, em oposição aos anteriores, não precisaria exercer um forte controle sobre a economia, posto que o controle era anterior à ação mesma do Estado. Assumindo o poder através deste Estado Liberal e controlando-o por mais de um século, a burguesia tem condições de disseminar a ideologia do não-intervencionismo, da queda das barreiras econômicas e da des-regulamentação, como forma de abrir caminho para suas atividades crescentes e seu voraz apetite.

Politicamente, o novo Estado pode assumir também uma feição muito mais democrática, em consonância com seus objetivos econômicos, posto que o controle da economia e da expropriação do excedente era regulado internamente e o aparelho repressivo estatal precisaria ser acionado apenas em casos extremos. Nesse momento do desenvolvimento do Estado Capitalista, a força do Estado estava tremendamente diminuída, se comparada com a força da sociedade civil, nos termos aqui já expostos.

O crescimento das empresas, operadoras básicas do mercado, com a conseqüente formação de monopólios e oligopólios leva a uma crise no poder de auto-regulamentação do mercado, sendo necessário que o Estado voltasse a intervir na economia para regular o mercado; aparece então uma nova feição do Estado Capitalista, marcando uma nova fase, a do Estado Regulador. Bresser Pereira 37 afirma que países que tiveram retardada sua revolução industrial, como Japão, Rússia e Alemanha, nem chegaram a conhecer o Estado Liberal, assumindo a plenitude do Capitalismo com e através do Estado Regulador. Este alcançaria, porém, mesmo os países tradicionalmente liberais, apesar das resistências. Nessa nova feição do Estado Capitalista, cresce enormemente o poder e a atuação do aparato político:

          "Quando se fala em capitalismo monopolista do Estado ou simplesmente capitalismo de Estado, quer-se referir a uma formação social dominantemente capitalista, mas na qual o Estado adquiriu um papel fundamental, não apenas no campo político, mas também no campo econômico. O Estado abandonou o laissez faire para se transformar em órgão regulador e motor da economia. Através do planejamento econômico, da política econômica e das atividades empresariais diretas, o Estado, em sua função reguladora, substitui em parte o mercado, definindo preços, salários e taxas de juros, tributando salários e ordenados e lucros, estabelecendo prioridades para os investimentos privados, orientando o consumo através de taxas diferenciadas; em sua função motora realiza grandes despesas, e torna-se ele próprio empresário, responsável por ampla parcela da acumulação de capital, na medida em que implanta  um poderoso setor produtivo estatal." 38

Esse crescimento do poder e atuação do Estado não implica necessariamente, porém, numa diminuição do poder da sociedade civil, que continua forte; constrói-se todavia, novo equilíbrio de forças, diverso daquele do Estado Liberal.

Essas duas tipologias do Estado Capitalista (Liberal e Regulador), complementadas por uma terceira que se desenvolveu nos países de economia dependente - os subdesenvolvidos - e, segundo Pereira, também nos países do Leste com o malogro da revolução socialista, a do Estado Tecnoburacrático, caracterizada pela constituição de uma classe administrativa cooptada da burguesia que assume as funções políticas do Estado e as funções econômicas da acumulação do capital, constituem um panorama geral da atualidade do Estado moderno 39.

Assistimos hoje a um certo impasse nestas feições do Estado, com uma nova onda de discussões em torno de um neo-liberalismo, arauto de não ingerência estatal na economia, ao qual se contrapõem os defensores da função regulamentadora do Estado. Independentemente da feição específica que assuma, porém, seja ela mais ou menos "liberalizante", o Estado capitalista não se afasta de suas características básicas que, como já alertávamos juntamente com Tocqueville desde o início, estavam também já presentes nas organizações político-estatais anteriores.

terça-feira, 2 de abril de 2013

O papel da linguagem no desenvolvimento da inteligência humana

É importante, nas relações humanas e sociais, refletir sobre o fundamental papel da linguagem para o desenvolvimento da inteligência. Pertence a linguagem a um sistema simbólico dos grupos humanos e certamente representa um salto qualitativo na evolução da espécie. Ela fornece os conceitos, as formas de organização do real, a mediação entre o sujeito e o objeto do conhecimento. É por meio dela que as funções mentais superiores são socialmente formadas e culturalmente transmitidas.
A linguagem é a maior criação da inteligência humana, pois é uma forma de acessar o mundo e o pensamento, tornando possível compreender e apreender as características dos fatos e objetos da realidade. Nós, seres humanos, somos, ao mesmo tempo, falantes e linguagem, considerando a linguagem uma criação humana, uma instituição sócio-cultural, que nos faz seres sociais e culturais. E, tendo a linguagem uma função social, ela é, antes de tudo, comunicação, expressão e compreensão. Essa função comunicativa está estreitamente combinada com o pensamento. A comunicação é uma espécie de função básica, porque permite a interação social e, ao mesmo tempo, organiza o pensamento, aguça a inteligência, aprimora a forma e o modo de viver no mundo.
Para Vygotsky [psicólogo e educador russo], a aquisição da linguagem passa por três fases: a) A linguagem social, que tem a função de denominar e comunicar, e seria a primeira linguagem que surge; b) A linguagem egocêntrica, ou seja, a progressão da fala social para a fala interna, ou seja, o processamento de perguntas e respostas dentro de nós mesmos – o que estaria bem próximo ao pensamento, representa a transição da função comunicativa para a função intelectual; c) A linguagem interior, intimamente ligada ao pensamento, ao intelecto das pessoas. É nessa fase que a linguagem aprimora, aperfeiçoa a inteligência humana. 
Muitos estudiosos se debruçam, até hoje, para melhor compreender o fenômeno da linguagem. Mas a abordagem histórica desse estudo teve início no século XVIII e o grande impulso ocorreu no Século XIX, constituindo-se, ao longo dos anos, objeto de estudo de várias ciências, como por exemplo, a Psicologia, a Filosofia, a Lingüística, entre outras. Porém, a importância da linguagem aparece com maior ênfase no século XX, tanto que alguns autores consideram como sendo impossível pensar sobre algo sem pensar na linguagem, uma vez que desde então se evidencia a clara convicção de que a palavra linguagem é o espaço da expressividade do mundo. E no caso da Filosofia Contemporânea, volta-se, principalmente para a significação ou para o sentido das expressões lingüísticas, não priorizando, apenas, as questões relacionadas à consciência ou à razão ou, ainda, à essência das coisas.
A inteligência, para Piaget [psicólogo e filósofo suíço, conhecido pelo seu trabalho pioneiro no campo da inteligência infantil. Afirmou que existe um processo de construção do conhecimento, e lançou a grande questão: "Como podemos conhecer?".], é o mecanismo de adaptação do organismo a uma situação nova e, como tal, implica a construção contínua de novas estruturas. Esta adaptação refere-se ao mundo exterior, como toda adaptação biológica. Desta forma, os indivíduos se desenvolvem, intelectualmente, a partir de exercícios e estímulos oferecidos pelo meio que os cercam. O que vale também dizer que a inteligência humana pode ser exercitada, buscando um aperfeiçoamento de potencialidades e a linguagem é o meio e o fim desse aperfeiçoamento, uma vez que a linguagem propicia o exercício contínuo e ininterrupto da mente humana.
Para Piaget, o comportamento dos seres vivos não é inato, nem resultado de condicionamentos. Para ele o comportamento é construído numa interação entre o meio e o indivíduo, tudo permeado pela linguagem. Esta teoria epistemológica (epistemo = conhecimento, e logia = estudo) é caracterizada como interacionista. A inteligência do indivíduo, como adaptação a situações novas, portanto, está relacionada com a complexidade desta interação das pessoas com o meio. Em outras palavras, quanto mais complexa for esta interação, mais “inteligente” será a pessoa que utiliza a linguagem.
Conclui-se o artigo dizendo que a linguagem, de acordo com o neurobiólogo americano William Calvin, é "a característica definidora da inteligência humana". Assim, com o devido respeito à capacidade de comunicação dos golfinhos, chimpanzés, aves e abelhas, o Homo Sapiens é a única espécie existente com o poder da fala. Essa é a capacidade que nos separa dos outros animais, que nos torna humanos. O desenvolvimento da inteligência humana está intimamente ligado ao desenvolvimento da linguagem. Tudo que ela vivencia deve ser reproduzido nas formas de expressão verbal e não verbal. É importante que ela “interprete” o mundo que a cerca e que comunique esta “leitura” do mundo para as pessoas, no amplo sentido de existência, de viver em comunidade. 

                                                                                Luisa Galvão Lessa