segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Karl Marx (1818-1883) - O Materialismo Dialético e Histórico

Marx fez uma crítica radical ao idealismo hegeliano, na qual afirma que Hegel inverte a relação entre o que é determinante – a realidade material – e o que é determinado – as representações e conceitos acerca dessa realidade. A filosofia idealista seria, assim, uma grande mistificação que pretende entender o mundo real, concreto, como manifestação de uma razão absoluta.
Marx procurou compreender a história real dos seres humanos em sociedade a partir das condições materiais nas quais eles vivem. Essa visão da história foi chamada de materialismo histórico. Para Marx não existe o indivíduo formado fora das relações sociais, como o querem Hegel, Feuerbach, Schopenhauer, Kierkegaard e outros tantos. Para ele “A essência humana é o conjunto das relações sociais”, o que significa que a forma como os indivíduos se comportam, agem, sentem, e pensam vincula-se à forma como se dão as relações sociais. Essas relações sociais, por seu lado, são determinadas pela forma de produção da vida material, ou seja, pela maneira como os seres humanos trabalham e produzem os meios necessários para a sustentação material das sociedades.
A forma como os homens produzem esses meios depende em primeiro lugar da natureza, isto é, dos meios de existência já elaborados e que lhes é necessário reproduzir;[1]
Ao falar da produção material da vida, Marx não se refere apenas à produção das inúmeras coisas necessárias à manutenção físicas dos indivíduos, considera o fato de que, ao produzirem todas essas coisas, os seres humanos constroem a si mesmos como indivíduos. Isso ocorre porque, “o modo de produção da vida material condiciona o processo geral de vida social, política e espiritual”[2]. Marx reconhece o trabalho como atividade fundamental do ser humano e analisa os fatores que o tornaram uma atividade massacrante e alienada no capitalismo. Marx pretende expor a lógica do modo de produção capitalista, em que a força de trabalho é transformada em uma mercadoria com dupla face: de um lado, é uma mercadoria como outra qualquer, paga pelo salário; de outro, é a única mercadoria que produz valor, ou seja, que reproduz o capital.
Marx também entende o desenvolvimento histórico-social como decorrente das transformações ocorridas no modo de produção. Nessa análise, ele se vale dos princípios da dialética, mas garante que seu “método dialético não só difere do hegeliano, mas é também sua antítese direta”[3]. Na concepção hegeliana, a dialética torna-se instrumento de legitimação da realidade existente. No pensamento de Marx, a dialética leva ao entendimento da possibilidade de negação dessa realidade “porque apreende cada forma existente no fluxo do movimento, portanto também com seu lado transitório”. Ou seja, a dialética em Marx permite compreender a história em seu movimento, em que cada etapa é vista não como algo estático e definitivo, mas como algo transitório, que pode ser transformado pela ação humana. De acordo com Marx, a história é feita pelos seres humanos, que interferem no processo histórico e podem, dessa forma, transformar a realidade social, sobretudo se alterarem seu modo de produção.
 
Faça um comentário critico sobre o materialismo dialético e histórioco de Marx.

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

O Positivismo de Comte


O Positivismo de Comte é a corrente filosófica que promove e estrutura o último estágio de desenvolvimento que a humanidade teria atingido, de acordo com sua teoria. Comte usa o termo filosofia tal como Aristóteles, i.e., como definição do sistema geral de conhecimento humano. Descarta conhecimentos que não possam ser comprovados experimentalmente. Compreende não apenas uma teoria da ciência, mas também uma concepção de história e proposta de reforma da sociedade e da religião. Positivismo em sentido amplo designa teoria que exclua toda e qualquer negação e afirme apenas o idêntico.
O termo positivo é usado significando real, por oposição ao quimérico, o útil em oposição ao ocioso. Significa também o contrário de negativo e indica tendência de substituir o absoluto pelo relativo.
A Lei dos Três Estados è Comte afirma ter descoberto uma grande lei fundamental segundo a qual o espírito dos indivíduos (e da humanidade, e das ciências) atravessa um estado teológico (em que se acredita-se que fenômenos são obra de agentes sobrenaturais), um estado metafísico (em que agentes sobrenaturais são substituídos por forças abstratas) e um estado positivo (em que se limita a expor fenômenos e suas inter-relações) . É somente no terceiro estado que se realiza o verdadeiro espírito científico ou positivo, que se atém à observação dos fatos, à racionalização sobre eles, e à busca de suas leis (suas relações invariáveis).
Comte afirma que o espírito positivo está tão afastado do empirismo (que é uma “estéril acumulação de fatos) quanto do misticismo. Somente existe ciência quando se conhecem os fenômenos por suas relações constantes de concomitância e sucessão (i.e., suas leis), acarretando possibilidade de previsão racional.
Comte afirma que o conhecimento é incompleto e relativo, em oposição às propostas metafísicas do absoluto.
Ciência é a forma de conhecimento que: (a) tem certeza sensível de observação sistemática e certeza metódica de acesso aos dados fenômenos estudados; (b) relaciona fenômenos a princípios; (c) busca relações de concomitância e sucessão entre fenômenos,i.e., busca suas leis. O fim da Filosofia é a organização das ciências.
Critérios de Classificação das Ciências è (a) ordem cronológica de seu aparecimento; (b) complexidade crescente de cada uma das ciências; (c) generalidade decrescente; (d) dependência mútua entre estudos científicos.
Ciências em Estado Positivo è Astronomia; Física; Química; Filosofia; Sociologia (Física Social).
Quanto mais simples é uma ciência, mais rápido entra no estado positivo.
Sociologia ou Física Social é a mais importante das ciências. Constitui o resumo e o coroamento das demais que a precedem. Significa o ponto de partida da moral, política e da religião.
Moral, Política e Religião Positivas: (a) estática social, estuda a harmonia das condições de existência e estabelece a ordem social; (b) dinâmica social, estuda o desenvolvimento ordenado da sociedade e estabelece as leis do progresso.
É com Ordem e Progresso que Comte procura superar as duas principais correntes políticas de seu tempo. A corrente conservadora argumentava que os problemas existentes na sociedade emanavam da destruição da ordem anterior (ordem medieval, aristocrática). A corrente progressista achava que os problemas eram originados pela não ruptura total com a ordem anterior. Comte afirma que sem ordem não há progresso, que é o desenvolvimento da própria ordem. Há complementaridade entre ordem e progresso, visando restaurar a unidade social. Idéia-chave “amor por princípio, ordem por base, progresso por fim”.
A Moral de Comte é geralmente conhecida por suas teses mais populares: altruísmo (viver para outrem), ou negação dos direitos em favor dos deveres, ou a crítica à liberdade de consciência. A moral deveria despertar nos súditos sentimentos de obediência e sujeição, e nos governantes, responsabilidade no exercício da autoridade. Os ricos deveriam administrar perfeitamente seus bens, e os pobres deveriam satisfazer-se com sua posição social. Nem a economia, nem a política poderiam ser vistas separadamente da moral.
Religião da Humanidade como Grande Ser consiste em ordenar cada natureza individual e religar todas as individualidades. Prega a comunhão de todos os homens no tempo e no espaço. Influenciada pelos sacramentos católico-romanos, com culto à mulher, centralização em Paris, formulação de novo calendário. O calendário positivista inclui dias santos para “louvar” pensadores como Descartes.
Heranças do Positivismo atualmente è desprezo pela metafísica; valorização do fato, da experiência e da prova; confiança sem reservas na ciência; forma “científica” aos estudos sociais; sociedade prevista e controlada em todos os níveis.
Correntes Positivistas è Ortodoxa é minoritária e adota a parte religiosa. Heterodoxa é a majoritária, adota apenas parte filosófico-política.
Positivismo no Brasil è participação na Proclamação da República (1889) e Constituição de 1891, mote “Ordem e Progresso” na bandeira. Separação da Igreja e do Estado, decreto de feriados, casamento civil, exercício das liberdades religiosa e profissional, fim do anonimato da imprensa, reforma educacional (proposta por Benjamin Constant).
Ponto Fraco da Teoria Científica de Comte è desconsidera procedimentos hipotéticos e dedutivos, portanto sua metodologia torna-se fraca.
Fontes :
O Positivismo de Comte, da Prof. Maria Célia Simon (Filosofia, Universidade Santa Úrsula).
Ordem e Progresso, do Prof. Rafael Augustus Sega.
Leia atentamente o conteúdo sobre o Positivismo de Augusto Comte e apresente sua compreensão fazendo um comentário de no minimo 10 linhas.

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Lutero e as divisões do mundo

1. Em busca de uma história mais verdadeira
Há 500 anos, quando a Europa fundamentalista se lançava ao mar para conquistar novas terras, escravizando e exterminando povos indígenas e negros, muitas vozes se levantaram para denunciar o mau uso da religião. Mulheres e homens fizeram surgir, sob a ação do Espírito Santo, movimentos que ajudaram a recuperar o sonho do cristianismo primitivo.
Entre todas essas vozes, uma das que mais ecoaram foi a de um monge chamado Martinho Lutero. Com toda a sua fragilidade humana, com seus erros e acertos, Lutero conseguiu mostrar à Igreja de Cristo que estava na hora de "voltar a Jesus".
O papa Adriano VI, contemporâneo de Lutero, foi capaz de ler a ação do Espírito e assim escreveu a ele:
"Sabemos que, mesmo na Santa Sé, e desde muitos anos, muitas abominações foram cometidas (...). Faremos tudo para começar a reformar a corte de Roma, da qual veio todo o mal. É dela que sairá a cura, como dela veio a doença".
Infelizmente, o sucessor de Adriano IV não teve a mesma diplomacia. Lutero também foi se acirrando em suas posições e as rupturas se acentuaram. Disputas posteriores aumentaram as rivalidades, quase nunca permitindo, nem a católicos romanos nem a luteranos, registros históricos menos tendenciosos. Para a maioria dos romanos, Lutero transformou-se no semeador da discórdia, no culpado pelo surgimento de "outras igrejas não fundadas por Jesus Cristo". Para boa parte dos protestantes, Roma e seu poderio passaram a ser encarnação da besta do Apocalipse.
A inquisição condenou à morte Joana D'Arc, em nome da fé ela foi levada à fogueira. Mais tarde, a Igreja Romana reconheceu o seu erro e elevou Joana D'Arc à honra dos altares. No caso da Reforma, as feridas foram maiores, ainda não foi possível reconhecer todos os erros, de um lado ou de outro.
Algumas afirmações, entretanto, não podem continuar sendo repetidas. Não só por faltarem com a verdade, mas por não contribuírem para a construção da tão sonhada unidade.
2. Lutero dividiu a Igreja?
No ano de 450, sob o pretexto das discussões se Jesus tinha uma natureza (era só Deus) ou duas (a divina e a humana), houve a separação da Igreja Siriana. Em 1054, a Igreja de Constantinopla e a Igreja de Roma romperam as relações, excomungaram-se mutuamente, declarando-se inimigas. Uma chaga que até hoje não se curou. Isto para falar apenas das divisões maiores.
Cristãos e cristãs, de maneira geral, por desconhecimento histórico, continuam a repetir que Lutero foi o responsável pela divisão, sem reconhecer na verdade que, profeticamente, o que fez foi trazer à tona a divisão já existente. E ainda que acontecimentos posteriores viessem a provocar novas rupturas, é importante recuperar sua intenção inicial.
Lutero não falava em separar-se da Igreja de Cristo, mas em reformá-la. Daí o nome Reforma. Chegava aos seus ouvidos os mesmo apelos proféticos que trezentos anos antes, moveram Francisco de Assis: "Reconstrói a minha Igreja, que está em ruínas". E a reconstrução passa pela busca da unidade. É por isso que o próprio Lutero assim orava a Deus:
"Ó eterno e misericordioso Deus, Tu és do Deus da Paz, do amor e da unidade e não da discórdia e da confusão, que permites em teus justos julgamentos. Este mundo, ao se esquecer de Ti, tem se dividido e quebrado. Só Tu podes criar e sustentar a unidade.
(...) Concede, então, que voltemos à tua unidade e evitemos toda discórdia. E assim, sejamos de uma só vontade, um só conhecimento, uma só disposição e uma só compreensão sobre o fundamento de Jesus Cristo, nosso Senhor".
3. Lutero e a leitura da Bíblia
Também por desconhecimento, é costume ouvir, especialmente no mundo católico romano, a afirmação de que Lutero tirou sete livros da Bíblia. Isso não é verdade. Ao contrário, como grande teólogo que era, Lutero impulsionou um grande movimento de leitura e interpretação da Bíblia. A grande sede da Palavra de Deus foi diminuída não só pelas traduções que fez (o povo não sabia grego e hebraico e nem mesmo o latim), mas também pelos seus comentários exegéticos aos livros sagrados. É bom lembrar que a tradição romana proibia o manuseio da Bíblia para quem não fosse clérigo. Nem mesmo nos cursos de teologia incentiva-se o estudo da Palavra de Deus.
Lutero traduziu todos os livros, incluindo em sua edição também aqueles que não têm original em hebraico (chamados apócrifos em ambiente protestante ou deuterocanônicos no mundo católico). E não proibiu ninguém de utilizá-los.
Acontece que nem mesmo a Igreja de Roma tinha fechado a questão acerca do cânon, isso se dá apenas em Trento (1545-1577). Outros grupos reformados passarão a utilizar, como os judeus, apenas o cânon hebraico, mas isso não vem de Lutero. Dele, o que precisamos recuperar é o seu amor à Palavra de Deus.
4. Um bom conselho aos nossos governantes
Erasmo de Rotterdam, teólogo humanista muito admirado por Lutero, criticou fortemente o reformador quando este apoiou as atitudes dos príncipes alemães, que perseguiram com violência os movimentos camponeses que exigiam seus direitos. Ele estaria legitimando a opressão. Ora, o grande profeta da paz, Helder Câmara, apoiou o Golpe Militar de 1964, percebendo depois o seu erro. E ainda vemos hoje pastores e bispos apoiarem ações violentas contra os sem-terra.
Mas, se os príncipes alemães manipularam a intenção e o movimento de Lutero, é porque não ouviram sua própria voz. Certa vez, um príncipe pediu de Lutero alguns conselhos afim de que não agisse com tirania em relação a seu povo. A resposta de Lutero foi simples e, se fosse ouvida pelos governantes que se dizem donos do mundo, daria outros rumo a esse momento tão delicado de nossa história. Lutero lhe enviou como resposta um comentário ao Magnificat, com a seguinte introdução: "Se queres ser um bom governante, aprende da Virgem Maria. Ninguém como ela soube acreditar num Deus que derruba os poderosos de seus tronos e eleva os humildes".
Façamos ecoar em nossos corações e em nossas relações o mesmo apelo! Só assim seremos capazes de reconstruir a unidade.


Edmilson Schinel

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

BARTIMEU, O CEGO DE JERICÓ, DISCÍPULO MODELO PARA TODOS NÓS (Mc 10,46-52)

Finalmente, após longa travessia, chegam a Jericó, última parada antes da subida para Jerusalém. O cego Bartimeu está sentado à beira da estrada. Não pode participar da procissão que acompanha Jesus. Mas ele grita, invocando a ajuda de Jesus: "Filho de Davi! Tem dó de mim!" O grito do pobre incomoda. Os que vão à procissão tentam abafá-lo. Mas "ele gritava mais ainda!" E Jesus, o que faz? Ele escuta o grito, para e manda chamá-lo! Os que queriam abafar o grito incômodo do pobre, agora, a pedido de Jesus, são obrigados a ajudar o pobre a chegar até Jesus.
Bartimeu larga tudo e vai até Jesus. Não tem muito. Apenas um manto. Mas era o que tinha para cobrir o seu corpo (cf. Ex 22,25-26). Era a sua segurança, o seu chão! Jesus pergunta: "O que você quer que eu faça?" Não basta gritar. Tem que saber por que grita! "Mestre, que eu possa ver novamente!" Bartimeu tinha invocado Jesus com ideias não inteiramente corretas, pois o título "Filho de Davi" não era muito bom.
O próprio Jesus o tinha criticado (Mc 12,35-37). Mas Bartimeu teve mais fé em Jesus do que nas suas ideias sobre Jesus. Assinou em branco. Não fez exigências como Pedro. Soube entregar sua vida aceitando Jesus sem impor condições. Jesus lhe disse: "'Tua fé te curou!' No mesmo instante, o cego recuperou a vista". Largou tudo e seguiu Jesus no caminho para o Calvário (10,52).
Sua cura é fruto da sua fé em Jesus (Mc 10,46-52). Curado, Bartimeu segue Jesus e sobe com ele para Jerusalém. Tornou-se discípulo modelo para Pedro e para todos os que queremos "seguir Jesus no caminho" em direção a Jerusalém: acreditar mais em Jesus do que nas nossas ideias sobre Jesus! Nesta decisão de caminhar com Jesus estão a fonte da coragem e a semente da vitória sobre a cruz. Pois a cruz não é uma fatalidade, nem uma exigência de Deus. Ela é a consequência do compromisso assumido com Deus de servir aos irmãos e de recusar o privilégio. 

A fé é uma força que transforma as pessoas
A Boa Nova do Reino anunciada por Jesus era como um fertilizante. Fazia crescer a semente da vida que estava escondida no povo, escondida como fogo em brasa debaixo das cinzas das observâncias sem vida. Jesus soprou nas cinzas e o fogo acendeu, o Reino desabrochou e o povo se alegrou. A condição era sempre a mesma: crer em Jesus.
A cura de Bartimeu (Mc 10,46-52) esclarece um aspecto muito importante da longa instrução de Jesus aos discípulos. Bartimeu tinha invocado Jesus com o título messiânico "Filho de Davi" (Mc 10,47). Jesus não gostava deste título (Mc 12,35-37). Porém, mesmo invocando Jesus com ideias não inteiramente corretas, Bartimeu teve fé e foi curado.
Diferentemente de Pedro (Mc 8,32-33), acreditou mais em Jesus do que nas ideias que tinha sobre Jesus. Converteu-se, largou tudo e seguiu Jesus no caminho para o Calvário (Mc 10,52). A compreensão plena do seguimento de Jesus não se obtém pela instrução teórica, mas sim pelo compromisso prático, caminhando com ele no caminho do serviço, desde a Galiléia até Jerusalém.
Quem insiste em manter a ideia de Pedro, isto é, do Messias glorioso sem a cruz, nada vai entender de Jesus e nunca chegará a tomar a atitude do verdadeiro discípulo. Quem souber crer em Jesus e fazer a "entrega de si" (Mc 8,35), aceitar "ser o último" (Mc 9,35), "beber o cálice e carregar sua cruz" (Mc 10,38), este, como Bartimeu, mesmo tendo ideias não inteiramente corretas, conseguirá enxergar e "seguirá Jesus no caminho" (Mc 10,52). Nesta certeza de caminhar com Jesus estão a fonte da coragem e a semente da vitória sobre a cruz. 

Exto extraído do livro ''CAMINHANDO COM JESUS'' - Círculos Bíblicos do Evangelho de Marcos - Coleção A Palavra na Vida 184/185. CEBI Publicações.

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

A besta neoliberal e a Leitura Popular da Bíblia - Mesters e Orofino

Dar um testemunho da caminhada do trabalho bíblico e das leituras populares da Bíblia que realizaram ao longo de 35 anos junto ao Centro de Estudos Bíblicos - CEBI. Com esse objetivo Francisco Orofino e Carlos Mesters entabularam um debate marcado pela riqueza de abordagens e por um humor delicado e calcado em experiências de sua vivência religiosa. A conversa aconteceu na tarde desta terça-feira, 09-10-2012, dentro da programação do Congresso Continental de Teologia, acolhido pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU.  
(Conheça os livros sobre o Apocalipse de Mesters e Orofino clicando aqui)

A leitura popular da Bíblia é o uso dessa obra na animação dos movimentos populares, definiu Orofino. "Sem os movimentos populares não haveria leitura popular da Bíblia", observou. Seu método primordial é a animação dos movimentos populares em suas diversas frentes de luta. Por isso, algo importante é colocar a Bíblia na mão do povo, algo que nunca houve na história da Igreja. A primeira grande meta das pastorais bíblicas antes do Concílio Vaticano II foi entregar a Bíblia às pessoas do povo.

"Se há uma coisa que Jesus nunca teve na vida dele foi uma Bíblia", gracejou Orofino. Jesus nunca pôde ter uma Bíblia. Ter um livro era algo extremamente caro àquela época, e quando houve a chance das pessoas terem a Bíblia consigo, veio o Concílio de Trento, e com ele o medo de que a Palavra "caísse" na mão do povo. Com a vinda da imprensa essa realidade mudou.

Orofino recordou que, há tempos atrás, todos na Igreja Católica faziam catequese através de perguntas e respostas. Bastava decorar o catecismo para ganhar um santinho e fazer a primeira comunhão. Uma segunda característica era a divulgação da História Sagrada do Antigo e do Novo Testamento, de Bruno Heuser. Todos eram exortados a ler tal obra, relembra Orofino. Esse livro colocou na cabeça do povo uma coisa terrível: tudo que está na Bíblia é verdadeiro e histórico. Assim, as coisas ali escritas são verdadeiras porque são históricas.

No Brasil a partir dos anos 1950, chegou-se a conclusão de que era preciso colocar a Bíblia na mão do povo. Um desses visionários que apercebeu-se disso era João José Pedreira de Castro. Ele "pirateou" um texto em francês de um mosteiro beneditino da Bélgica e enviou essa tradução para a editora Vozes, que não aceitou publicá-la. Então, decidiu tentar a publicação com a editora dos claretianos. Surgia, assim, a Bíblia da Ave Maria. Ali há erros de tradução que são de ordem teológica, disse Orofino. Mesmo assim, até hoje, por ano, essa obra tem uma edição de 650 mil exemplares.

Fala aos sem voz

O que é a primeira coisa que o povo procura na Bíblia?, questionou Orofino. O preço, respondeu ele próprio. Então, uma Bíblia popular tem que ter preço acessível. Em segundo lugar, vem o tamanho da letra. Se for pequena demais, ninguém compra. A terceira coisa que as pessoas prestam atenção na Bíblia é o livro de Apocalipse. Então, alguns leitores se assustam e até desistem de ler. Então, era preciso desenvolver uma metodologia de leitura da Bíblia numa perspectiva pastoral.

A leitura popular da Bíblia também ajudou a contornar algo difícil na Igreja Católica, que era dar possibilidade de fala àquelas pessoas a quem a palavra sempre foi negada. Levar as pessoas a falar é muito difícil, e mais ainda a dar opinião e enfrentar um esquema por ausência de informação e formação. Por isso, acentua Orofino, é perceptível através deste Congresso que houve avanços no protagonismo dos leigos. Trata-se de perceber que o leigo vai, gradativamente, conquistando sua fala, se construindo e capacitando. Esse leigo instruído e capacitado, com a fonte da revelação na mão, pode chegar mesmo a dizer que o padre está, por vezes, errado.

Uma metodologia a ser revista

Francisco Orofino prosseguiu sua apresentação trazendo um elenco de questões que permitiram que a leitura popular da Bíblia abrisse o leque hermenêutico a partir dos trabalhos realizados pelo Centro de Estudos Bíblicos - CEBI.

1.  A teologia da terra e o trabalho da CPT: Trata-se de um dos trabalhos mais visíveis no Brasil, basta ver a mobilização em torno do Novo Código Florestal, para citar apenas um dos temas mais recentes com o qual se envolveu.

2.  Grupos de fé e política: A questão do estado e articulação de vários movimentos desde a queda do regime militar, as lutas pelos projetos da Constituição e a mobilização pelo impeachment de Collor são alguns dos acontecimentos nos quais esses grupos tiveram protagonismo. Houve momentos de vitórias, como a lei da ficha limpa, mas houve derrotas como o plebiscito do desarmamento.

3.  Consciência indígena: Estabeleceram-se debates fundamentais e formadores sobretudo a partir da celebração dos 500 anos da chegada dos brancos e em episódios como Raposa Serra do Sol e a recuperação das terras dos pataxós.

4.  Luta dos afrodescentens e teologia afro, luta das mulheres dos meios populares (Lei Maria da Penha)

5.  Mobilização dos homossexuais: As grandes marchas de orgulho gay mobilizam parcela significativa de nossa sociedade, mesmo em locais onde essa atitude é um risco de vida.

6.  Frentes ecológicas

7. Forum Social Mundial

8.  Capacidade de articulação das ONGs

9. Avanços da ciência, principalmente a questão da informática e biotecnologia, além da física quântica.

Apesar de tudo isso que vivenciamos ao longo de 35 anos de lutas, percebemos que, para uma grande maioria de grupos da base, a pauta dos anos 70 e 80 continua de pé ainda anseia por trabalho, saúde, transporte, educação, moradia e alimentação. A pauta de reivindicações teve seu leque ampliado, mas as questões fundamentais permanecem as mesmas, frisou Orofino. É preciso, por isso, rever a metodologia de discussão.

A besta neoliberal

Referindo-se ao último livro da Bíblia, o Apocalipse, Orofino mencionou a vinda da primeira besta, oriunda do mar, este sinônimo de abismo no livro sagrado. A primeira besta que emerge das águas é o estado de segurança nacional, que por vezes dá suas caras até hoje em situações de opressão política nos países do Terceiro Mundo.

A segunda besta não vem do mar, mas da terra, está dentro da comunidade, disfarçada de cordeiro. Mas quando ela fala, a voz é do dragão. "Essa besta é poderosa porque desagrega e enfeitiça, uma vez que é capaz de criar maravilhas. Com ela se pode comprar e vender. Essa besta marca a todos: escravos, livres, ricos, pobres, pequenos, grandes. Todos querem a marca da besta para poder comprar e vender. Talvez seja o tema mais discutido desse Congresso Continental de Teologia: trata-se do liberalismo". Sua meta, continua Orofino, é produzir o consumidor, torná-lo individualizado por uma lógica perversa que incute o "ter" como central. Por isso, a morte está presente dentro de muitas casas e famílias. "A leitura popular da Bíblia conseguiu lutar contra a primeira besta, mas ante a segunda ainda não estamos seguros".

Sob uma nova luz

Carlos Mesters assumiu sua parte do debate recuperando a importância do documento Dei Verbum, conectando-o a uma leitura popular da Bíblia. Quando estava sendo preparado o Concílio Vaticano II, Cardeal Otaviani organizou um documento sobre a revelação divina, no sentido do que Deus falou no passado. Tal documento foi iniciado no Concílio, já na primeira sessão, e foi um dos últimos a ser concluído. Isso provocou uma tempestade na Igreja.

As pessoas não leem a Bíblia para saber do passado, mas para entender como Deus apela para sua vida. Por isso a leitura orante é fundamental. "Deus está em tudo, assim como seu espírito. E a Bíblia nos ajuda a descobrir isso", complementou Mesters.

Outro tópico que provocou reação na plateia foi a afirmação de que a Bíblia não é um catálogo de verdades. Trata-se da revelação da graça e misericórdia de Deus. "Tudo que a Bíblia fala se materializa pelo rosto das pessoas. Nasce, assim, uma nova experiência de Deus na vida cotidiana. Nasce uma experiência que não se expressa em palavras". E Mesters completa: "É esse critério que irá determinar a leitura popular e que menos aparece em suas explicitações e interpretações. Isso porque os olhos podem ver tudo, menos o próprio olho. Por isso, deve-se ler a Bíblia com uma nova luz".

Palavras ambulantes de Deus

Alguns pontos do documento Dei Verbum que aparecem com força na leitura popular foram assinalados por Carlos Mesters:

1. A Bíblia é palavra de Deus. Na Bíblia a pessoa encontra a sua memória, palavras que são sua constituição. Revelar é tirar o véu. O Apocalipse significa revelação. Deus está nos fatos, e nós não enxergamos. O missionário não leva a doutrina, ele tira os véus da realidade. A vida ajuda a ler a Bíblia, e a Bíblia ajuda a entender a vida. Somos palavras ambulantes de Deus, e tudo é expressão da palavra de Deus, e descobrir isso é a revelação. Deus escreveu dois livros: a vida e a Bíblia. Essa é uma visão muito antiga que está reaparecendo nas Comunidades Eclesiais de Base - CEBs.

2. A Bíblia é a palavra de Deus em linguagem humana. Isso foi dito desde Pio XII e repetido no Dei Verbum. Isolar o texto de seu contexto faz a Bíblia virar um "tijolo", podendo até matar se atingir alguém na cabeça. As palavras não devem ser tomadas ao pé da letra, porque senão vira fundamentalismo. "E até porque letra não tem pé", ironizou.

3. A Bíblia não é um catálogo de verdades. Deus se comunica a si mesmo. Esse é um dos pontos mais importantes, e a visão que o povo vai tendo sobre Deus, trocando ideias de si em círculos bíblicos. Precisamos perceber que Deus está conosco.

4. Jesus liga o Antigo e o Novo Testamento.

5. A Bíblia é livro da igreja, e através dela nos filiamos a uma grande tradição.  A igreja nasce do chão, do povo, e não de cima. A leitura fundamentalista agrada a interesses opressores bastante particulares. A Bíblia deve ser ligada à vida, no contexto concreto do povo.

Mesters finalizou sua exposição apresentando aspectos da leitura orante e suas interpretações: "a palavra deve poder circular", mencionou. Nas pequenas comunidades esse trabalho refaz o relacionamento humano na base. Se tentarmos esconder as divisões, aí esquecemos de consertar os relacionamentos em sua forma mais primordial. "Isso equivale a colocar peruca num careca: não faz cabelo nascer".

Quem é Francisco Orofino?

Francisco Orofino é biblista e educador popular. Assessora grupos populares e comunidades de base nos municípios da Baixada Fluminense. É autor de vários livros e leciona em Institutos de Teologia voltados para a formação de leigos. Fez doutorado em Teologia Bíblica na PUC-Rio (2000). É professor de Teologia Bíblica no Instituto Paulo VI, na diocese de Nova Iguaçu, RJ.

Quem é Carlos Mesters?

Carlos Mesters é frade Carmelita, doutor em Teologia Bíblica. É natural da Holanda e ligado à caminhada das Comunidades Eclesiais de Base, ajudou a criar o CEBI (Centro de Estudos Bíblicos). Escreveu, entre outros, Esperança de um povo que luta (São Paulo: Paulus, 1983), Círculos bíblicos (São Paulo: Paulus, 2001), Paulo apóstolo: um trabalhador que anuncia o evangelho (São Paulo: Paulus, 2002), Bíblia: livro feito em mutirão (São Paulo: Paulus, 2002), e Por trás das palavras (Petrópolis: Vozes, 2003). Mesters assessorou de um dos bispos brasileiros na XII Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, que ocorreu de 5 a 26 de outubro de 2008, no Vaticano.

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Papa: Concílio Vaticano II, imagem da Igreja de Jesus Cristo que abraça todo o mundo


O jornal da Santa Sé, L'Osservatore Romano, publicou uma edição especial por ocasião do 50° aniversário de abertura do Concílio Vaticano II.
A publicação, em 40 mil exemplares, é composta por narrativas intensas do período do concílio com detalhes de crônicas pouco conhecidas e fotografias raras. Abre essa edição o texto de Bento XVI que na época era jovem e participou como teólogo.
Segue na íntegra, o texto do Santo Padre.
Foi um dia maravilhoso aquele 11 de Outubro de 1962 quando, com a entrada solene de mais de dois mil Padres conciliares na Basílica de São Pedro em Roma, se abriu o Concílio Vaticano II. Em 1931, Pio XI colocara no dia 11 de Outubro a festa da Maternidade Divina de Maria, em recordação do facto que mil e quinhentos anos antes, em 431, o Concílio de Éfeso tinha solenemente reconhecido a Maria esse título, para expressar assim a união indissolúvel de Deus e do homem em Cristo. O Papa João XXIII fixara o início do Concílio para tal dia com o fim de confiar a grande assembleia eclesial, por ele convocada, à bondade materna de Maria e ancorar firmemente o trabalho do Concílio no mistério de Jesus Cristo. Foi impressionante ver entrar os bispos provenientes de todo o mundo, de todos os povos e raças: uma imagem da Igreja de Jesus Cristo que abraça todo o mundo, na qual os povos da terra se sentem unidos na sua paz.
Foi um momento de expectativa extraordinária pelas grandes coisas que deviam acontecer. Os concílios anteriores tinham sido quase sempre convocados para uma questão concreta à qual deviam responder; desta vez, não havia um problema particular a resolver. Mas, por isso mesmo, pairava no ar um sentido de expectativa geral: o cristianismo, que construíra e plasmara o mundo ocidental, parecia perder cada vez mais a sua força eficaz. Mostrava-se cansado e parecia que o futuro fosse determinado por outros poderes espirituais. Esta percepção do cristianismo ter perdido o presente e da tarefa que daí derivava estava bem resumida pela palavra «actualização»: o cristianismo deve estar no presente para poder dar forma ao futuro. Para que pudesse voltar a ser uma força que modela o porvir, João XXIII convocara o Concílio sem lhe indicar problemas concretos ou programas. Foi esta a grandeza e ao mesmo tempo a dificuldade da tarefa que se apresentava à assembleia eclesial.
Obviamente, cada um dos episcopados aproximou-se do grande acontecimento com ideias diferentes. Alguns chegaram com uma atitude mais de expectativa em relação ao programa que devia ser desenvolvido. Foi o episcopado do centro da Europa – Bélgica, França e Alemanha – que se mostrou mais decidido nas ideias. Embora a ênfase no pormenor se desse sem dúvida a aspectos diversos, contudo havia algumas prioridades comuns. Um tema fundamental era a eclesiologia, que devia ser aprofundada sob os pontos de vista da história da salvação, trinitário e sacramental; a isto vinha juntar-se a exigência de completar a doutrina do primado do Concílio Vaticano I através duma valorização do ministério episcopal. Um tema importante para os episcopados do centro da Europa era a renovação litúrgica, que Pio XII já tinha começado a realizar. Outro ponto central posto em realce, especialmente pelo episcopado alemão, era o ecumenismo: o facto de terem suportado juntos a perseguição da parte do nazismo aproximara muito os cristãos protestantes e católicos; agora isto devia ser compreendido e levado por diante a nível de toda a Igreja. A isto acrescentava-se o ciclo temático Revelação-Escritura-Tradição-Magistério. Entre os franceses, foi sobressaindo cada vez mais o tema da relação entre a Igreja e o mundo moderno, isto é, o trabalho sobre o chamado «Esquema XIII», do qual nasceu depois a Constituição pastoral sobre a Igreja no mundo contemporâneo. Atingia-se aqui o ponto da verdadeira expectativa suscitada pelo Concílio. A Igreja, que ainda na época barroca tinha em sentido lato plasmado o mundo, a partir do século XIX entrou de modo cada vez mais evidente numa relação negativa com a era moderna então plenamente iniciada. As coisas deviam continuar assim? Não podia a Igreja cumprir um passo positivo nos tempos novos? Por detrás da vaga expressão «mundo de hoje», encontra-se a questão da relação com a era moderna; para a esclarecer, teria sido necessário definir melhor o que era essencial e constitutivo da era moderna. Isto não foi conseguido no «Esquema XIII». Embora a Constituição pastoral exprima muitas elementos importantes para a compreensão do «mundo» e dê contribuições relevantes sobre a questão da ética cristã, no referido ponto não conseguiu oferecer um esclarecimento substancial.
Inesperadamente, o encontro com os grandes temas da era moderna não se dá na grande Constituição pastoral, mas em dois documentos menores, cuja importância só pouco a pouco se foi manifestando com a recepção do Concílio. Trata-se antes de tudo da Declaração sobre a liberdade religiosa, pedida e preparada com grande solicitude sobretudo pelo episcopado americano. A doutrina da tolerância, tal como fora pormenorizadamente elaborada por Pio XII, já não se mostrava suficiente face à evolução do pensamento filosófico e do modo se concebia como o Estado moderno. Tratava-se da liberdade de escolher e praticar a religião e também da liberdade de mudar de religião, enquanto direitos fundamentais na liberdade do homem. Pelas suas razões mais íntimas, tal concepção não podia ser alheia à fé cristã, que entrara no mundo com a pretensão de que o Estado não poderia decidir acerca da verdade nem exigir qualquer tipo de culto. A fé cristã reivindicava a liberdade para a convicção religiosa e a sua prática no culto, sem com isto violar o direito do Estado no seu próprio ordenamento: os cristãos rezavam pelo imperador, mas não o adoravam. Sob este ponto de vista, pode-se afirmar que o cristianismo, com o seu nascimento, trouxe ao mundo o princípio da liberdade de religião. Todavia a interpretação deste direito à liberdade no contexto do pensamento moderno ainda era difícil, porque podia parecer que a versão moderna da liberdade de religião pressupusesse a inacessibilidade da verdade ao homem e, consequentemente, deslocasse a religião do seu fundamento para a esfera do subjectivo. Certamente foi providencial que, treze anos depois da conclusão do Concílio, tivesse chegado o Papa João Paulo II de um país onde a liberdade de religião era contestada pelo marxismo, ou seja, a partir duma forma particular de filosofia estatal moderna. O Papa vinha quase duma situação que se parecia com a da Igreja antiga, de modo que se tornou de novo visível o íntimo ordenamento da fé ao tema da liberdade, sobretudo a liberdade de religião e de culto.
O segundo documento, que se havia de revelar depois importante para o encontro da Igreja com a era moderna, nasceu quase por acaso e cresceu com sucessivos estratos. Refiro-me à declaração Nostra aetate, sobre as relações da Igreja com as religiões não-cristãs. Inicialmente havia a intenção de preparar uma declaração sobre as relações entre a Igreja e o judaísmo – um texto que se tornou intrinsecamente necessário depois dos horrores do Holocausto (shoah). Os Padres conciliares dos países árabes não se opuseram a tal texto, mas explicaram que se se queria falar do judaísmo, então era preciso dedicar também algumas palavras ao islamismo. Quanta razão tivessem a este respeito, só pouco a pouco o fomos compreendendo no ocidente. Por fim cresceu a intuição de que era justo falar também doutras duas grandes religiões – o hinduísmo e o budismo – bem como do tema da religião em geral. A isto se juntou depois espontaneamente uma breve instrução relativa ao diálogo e à colaboração com as religiões, cujos valores espirituais, morais e socioculturais deviam ser reconhecidos, conservados e promovidos (cf. n. 2). Assim, num documento específico e extraordinariamente denso, inaugurou-se um tema cuja importância na época ainda não era previsível. Vão-se tornando cada vez mais evidentes tanto a tarefa que o mesmo implica como a fadiga ainda necessária para tudo distinguir, esclarecer e compreender. No processo de recepção activa, foi pouco a pouco surgindo também uma debilidade deste texto em si extraordinário: só fala da religião na sua feição positiva e ignora as formas doentias e falsificadas de religião, que têm, do ponto de vista histórico e teológico um vasto alcance; por isso, desde o início, a fé cristã foi muito crítica em relação à religião, tanto no próprio seio como no mundo exterior.
Se, ao início do Concílio, tinham prevalecido os episcopados do centro da Europa com os seus teólogos, nas sucessivas fases conciliares o leque do trabalho e da responsabilidade comuns foi-se alargando cada vez mais. Os bispos reconheciam-se aprendizes na escola do Espírito Santo e na escola da colaboração recíproca, mas foi precisamente assim que se reconheceram servos da Palavra de Deus que vivem e trabalham na fé. Os Padres conciliares não podiam nem queriam criar uma Igreja nova, diversa. Não tinham o mandato nem o encargo para o fazer: eram Padres do Concílio com uma voz e um direito de decisão só enquanto bispos, quer dizer em virtude do sacramento e na Igreja sacramental. Então não podiam nem queriam criar uma fé diversa ou uma Igreja nova, mas compreendê-las a ambas de modo mais profundo e, consequentemente, «renová-las» de verdade. Por isso, uma hermenêutica da ruptura é absurda, contrária ao espírito e à vontade dos Padres conciliares.
No Cardeal Frings, tive um «pai» que viveu de modo exemplar este espírito do Concílio. Era um homem de significativa abertura e grandeza, mas sabia também que só a fé guia para se fazer ao largo, para aquele horizonte amplo que resta impedido ao espírito positivista. É esta fé que queria servir com o mandato recebido através do sacramento da ordenação episcopal. Não posso deixar de lhe estar sempre grato por me ter trazido – a mim, o professor mais jovem da Faculdade teológica católica da universidade de Bonn – como seu consultor na grande assembleia da Igreja, permitindo que eu estivesse presente nesta escola e percorresse do interior o caminho do Concílio. Este livro reúne os diversos escritos, com os quais pedi a palavra naquela escola; trata-se de pedidos de palavra totalmente fragmentários, dos quais transparece o próprio processo de aprendizagem que o Concílio e a sua recepção significaram e ainda significam para mim. Em todo o caso espero que estes vários contributos, com todos os seus limites, possam no seu conjunto ajudar a compreender melhor o Concílio e a traduzi-lo numa justa vida eclesial. Agradeço sentidamente ao arcebispo Gerhard Ludwig Müller e aos colaboradores do Institut Papst Benedikt XVI pelo extraordinário compromisso que assumiram para realizar este livro.
Castel Gandolfo, na memória do bispo Santo Eusébio de Vercelas, 2 de agosto de 2012.
Papa Bento XVI

sábado, 29 de setembro de 2012

CNBB pede voto consciente e limpo!


"A lei que combate a compra de votos (9840/1999) e a lei da Ficha Limpa (135/2010), ambas nascidas da mobilização popular, são instrumentos que têm mostrado sua eficácia na tarefa de impedir os corruptos de ocuparem cargos públicos. A esses instrumentos deve associar-se a consciência de cada eleitor tanto na hora de votar, escolhendo bem seu candidato". A afirmação é da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil-CNBB em nota pública, 27-09-2012, sobre as eleições municipais.
Eis a nota.

O Conselho Episcopal Pastoral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil-CNBB, reunido em Brasília de 25 a 27 de setembro, considerando as eleições municipais do próximo mês de outubro, vem reforçar a importância desse momento para o fortalecimento da democracia brasileira. Estas eleições têm característica própria por desencadear um processo de maior participação em que os candidatos são mais próximos dos eleitores e também por debater questões que atingem de forma direta o cotidiano da vida do povo.

A Igreja louva e aprecia o trabalho de quantos se dedicam ao bem da nação e tomam sobre si o peso de tal cargo, em serviço de todas as pessoas (cf. GS 75). Saudamos, portanto, os candidatos e candidatas que, nesta ótica, apresentam seu nome para concorrer a um cargo eleitoral. Nascido da consciência e do desejo de servir com vistas à construção do bem comum, este gesto corrobora o verdadeiro sentido da atividade política.

Estimulamos os eleitores/as, inclusive os que não têm a obrigação de votar, a comparecerem às urnas no dia das eleições para aí depositar seu voto limpo. O voto, mais que um direito, é um dever do cidadão e expressa sua corresponsabilidade na construção de uma sociedade justa e igualitária. Todos os cidadãos se lembrem do direito e simultaneamente do dever que têm de fazer uso do seu voto livre em vista da promoção do bem comum (cf. GS 75).

A lei que combate a compra de votos (9840/1999) e a lei da Ficha Limpa (135/2010), ambas nascidas da mobilização popular, são instrumentos que têm mostrado sua eficácia na tarefa de impedir os corruptos de ocuparem cargos públicos. A esses instrumentos deve associar-se a consciência de cada eleitor tanto na hora de votar, escolhendo bem seu candidato, quanto na aplicação destas leis, denunciando candidatos, partidos, militantes cuja prática se enquadre no que elas prescrevem.

A vigilância por eleições limpas e transparentes é tarefa de todos, porém, têm especial responsabilidade instituições como a Justiça Eleitoral, nos níveis Federal, Estadual e Municipal, bem como o Ministério Público. Destas instâncias espera-se a plena aplicação das leis que combatem a corrupção eleitoral, fruto do anseio popular. O resgate da ética na política e o fim da corrupção eleitoral merecem nossa permanente atenção.

O político deve cumprir seu mandato, no Executivo ou no Legislativo, para todos, independente das opções ideológicas, partidárias ou qualquer outra legítima opção que cada eleitor possa fazer. Incentivamos a sociedade organizada e cada eleitor em particular, passadas as eleições, a acompanharem a gestão dos eleitos, mantendo o controle social sobre seus mandatos e cobrando deles o cumprimento das propostas apresentadas durante a campanha. Quanto mais se intensifica a participação popular na gestão pública, tanto mais se assegura a construção de uma sociedade democrática.

As eleições são uma festa da democracia que nasce da paixão política. O recurso à violência, que marca a campanha eleitoral em muitos municípios, é inadmissível: candidatos são adversários, não inimigos. A divisão, alimentada pelo ódio e pela vingança, contradiz o principio evangélico do amor ao próximo e do perdão, fere a dignidade humana e desrespeita as normas básicas da sadia convivência civil, que deve orientar toda militância política. Do contrário, como buscar o bem comum, princípio definidor da política?

A Deus elevemos nossas preces a fim de que as eleições reanimem a esperança do povo brasileiro  e que, candidatos e eleitores, juntos, sonhem um país melhor, humano e fraterno, com justiça social.

Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil, abençoe nossa Pátria!

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Cardeal Martini: A Igreja retrocedeu 200 anos. Por que temos medo?

O padre Georg Sporschill, o coirmão jesuíta que entrevistou o cardeal em Diálogos noturnos em Jerusalém, e Federica Radice se encontraram com Martini no dia 8 de agosto: "Uma espécie de testamento espiritual. O cardeal Martini leu e aprovou o texto". A entrevista é de Georg Sporschill e Federica Radice Fossati Confalonieri, publicada no jornal Corriere della Sera, 01-09-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.


Eis a entrevista.

Como o senhor vê a situação da Igreja?


A Igreja está cansada na Europa do bem-estar e na América. A nossa cultura envelheceu, as nossas igrejas são grandes, as nossas casas religiosas estão vazias, e o aparato burocrático da Igreja aumenta, os nossos ritos e os nossos hábitos são pomposos. Essas coisas expressam o que nós somos hoje? (...)
O bem-estar pesa. Nós nos encontramos como o jovem rico que, triste, foi embora quando Jesus o chamou para fazer com que ele se tornasse seu discípulo. Eu sei que não podemos deixar tudo com facilidade. Menos ainda, porém, poderemos buscar pessoas que sejam livres e mais próximas do próximo, como foram o bispo Romero e os mártires jesuítas de El Salvador. Onde estão entre nós os nossos heróis para nos inspirar? Por nenhuma razão devemos limitá-los com os vínculos da instituição.

Quem pode ajudar a Igreja hoje?

O padre Karl Rahner usava de bom grado a imagem das brasas que se escondem sob as cinzas. Eu vejo na Igreja de hoje tantas cinzas sobre as brasas que muitas vezes me assola uma sensação de impotência. Como se pode livrar as brasas das cinzas de modo a revigorar a chama do amor? Em primeiro lugar, devemos procurar essas brasas. Onde estão as pessoas individuais cheias de generosidade como o bom samaritano? Que têm fé como o centurião romano? Que são entusiastas como João Batista? Que ousam o novo como Paulo? Que são fiéis como Maria de Mágdala? Eu aconselho o papa e os bispos a procurar 12 pessoas fora da linha para os postos de direção. Pessoas que estejam perto dos pobres e que estejam cercadas por jovens e que experimentam coisas novas. Precisamos do confronto com pessoas que ardem, de modo que o espírito pode se difundir por toda parte.

Que instrumentos o senhor aconselha contra o cansaço da Igreja?

Eu aconselho três instrumentos muito fortes. O primeiro é a conversão: a Igreja deve reconhecer os próprios erros e deve percorrer um caminho radical de mudança, começando pelo papa e pelos bispos. Os escândalos da pedofilia nos levam a tomar um caminho de conversão. As questões sobre a sexualidade e sobre todos os temas que envolvem o corpo são um exemplo disso. Estes são importantes para todos e, às vezes, talvez, são até importantes demais. Devemos nos perguntar se as pessoas ainda ouvem os conselhos da Igreja em matéria sexual. A Igreja ainda é uma autoridade de referência nesse campo ou somente uma caricatura na mídia?

O segundo é a Palavra de Deus. O Concílio Vaticano II restituiu a Bíblia aos católicos. (...) Somente quem percebe no seu coração essa Palavra pode fazer parte daqueles que ajudarão a renovação da Igreja e saberão responder às perguntas pessoais com uma escolha justa. A Palavra de Deus é simples e busca como companheiro um coração que escute (...). Nem o clero nem o Direito eclesial podem substituir a interioridade do ser humano. Todas as regras externas, as leis, os dogmas nos foram dados para esclarecer a voz interior e para o discernimento dos espíritos.

Para quem são os sacramentos? Estes são o terceiro instrumento de cura. Os sacramentos não são uma ferramenta para a disciplina, mas sim uma ajuda para as pessoas nos momentos do caminho e nas fraquezas da vida. Levamos os sacramentos às pessoas que precisam de uma nova força? Eu penso em todos os divorciados e nos casais em segunda união, nas famílias ampliadas. Eles precisam de uma proteção especial. A Igreja sustenta a indissolubilidade do matrimônio. É uma graça quando um casamento e uma família conseguem isso (...).

A atitude que temos com relação às famílias ampliadas irá determinar a aproximação à Igreja da geração dos filhos. Uma mulher foi abandonada pelo marido e encontra um novo companheiro que cuida dela e dos seus três filhos. O segundo amor prospera. Se essa família for discriminada, não só a mãe é cortada fora, mas também os seus filhos. Se os pais se sentem fora da Igreja, ou não sentem o seu apoio, a Igreja perderá a geração futura. Antes da Comunhão, nós rezamos: "Senhor, eu não sou digno...". Nós sabemos que não somos dignos (...). O amor é graça. O amor é um dom. A questão sobre se os divorciados podem comungar deve ser invertida. Como a Igreja pode ajudar com a força dos sacramentos aqueles que têm situações familiares complexas?

O que o senhor faz pessoalmente?

A Igreja ficou 200 anos para trás. Como é possível que ela não se sacuda? Temos medo? Medo ao invés de coragem? No entanto, a fé é o fundamento da Igreja. A fé, a confiança, a coragem. Eu sou velho e doente e dependo da ajuda dos outros. As pessoas boas ao meu redor me fazem sentir o amor. Esse amor é mais forte do que o sentimento de desconfiança que às vezes eu percebo com relação à Igreja na Europa. Só o amor vence o cansaço. Deus é Amor. Eu ainda tenho uma pergunta para você: o que você pode fazer pela Igreja?

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

ECUMENISMO - NINGUÉM É DONO DE JESUS MARCOS 9,30-37

ABRIR OS OLHOS PARA VER
O texto de Evangelho que vamos meditar hoje traz uma grande incoerência da parte dos discípulos de Jesus. Enquanto Jesus anunciava a sua paixão e morte, os discípulos discutiam entre si quem deles era o maior. Jesus queria servir, eles só pensavam em mandar! A ambição os levava a querer subir às custas de Jesus. Vamos conversar sobre isto.

SITUANDO
Esta reflexão traz o segundo anúncio da paixão, morte e ressurreição de Jesus. Como no primeiro anúncio - Mc 8, 27-38 -, os discípulos ficam espantados e com medo. Não entendem a palavra sobre a cruz, porque não são capazes de entender nem de aceitar um Messias que se faz empregado e servidor dos irmãos. Eles continuam sonhando com um messias glorioso. O texto ajuda a perceber algo da pedagogia de Jesus. Mostra como ele formava os discípulos, como os ajudava a perceber e a superar o "fermento dos fariseus e de Herodes".
Tanto na época de Jesus como na époica de Marcos, havia o fermento da ideologia dominante. Também hoje, a ideologia da propagandas do comércio, do consumismo, das novelas influi profundamente no modo de pensar e de agir do povo. Na época de Marcos, nem sempre as comunidades eram capazes de manter uma atitude crítica frente à invasão da ideologia do império. A atitude de Jesus com relação aos apóstolos, descrita no evangelho, as ajudava e continua ajudando a nós hoje.

COMENTANDO
Marcos 9,30-32: O anúncio da cruz
Jesus caminha através da Galiléia, mas não quer que o povo o saiba, pois está ocupado com a formação dos discípulos e discípulas e conversa com eles sobre a cruz. Ele diz que, conforme a profecia de Isaías - Is 53,1-10 -, o Filho do Homem deve ser entregue e morto. Isto mostra como Jesus se orientava pela Bíblia, na formação aos discípulos. Ele tirava o seu ensinamento das profecias. Os discípulos o escutam, mas não entendem a palavra sobre a cruz. Mesmo assim, não pedem esclarecimento. Eles tem medo de deixar transparecer sua ignorância.
Marcos 9,33-34: A mentalidade de competição
Chegando em casa, Jesus pergunta: Sobre que vocês estavam discutindo no caminho? Eles não respondem. É o silêncio de quem se sente culpado, pois pelo caminho discutiam sobre quem deles era o maior. Jesus é bom formador. Não intervém logo, mas sabe aguardar o momento oportuno para combater a influência da ideologia dos seus formandos. A mentalidade de competição e de prestígio que caracteriza a sociedade do Império Romano já se infiltrava na pequena comunidade que estava apenas começando! Aqui aparece o contraste! Enquanto Jesus se preocupa em ser o Messias Servidor, eles só pensam em ser o maior. Jesus procura descer. Eles querem subir!
Marcos 9, 35-37: Servir, em vez de mandar
A resposta de Jesus é um resumo do testemunho de vida que ele mesmo vinha dando desde o começo: Quem quer ser o primeiro seja o último de todos, o servidor de todos! Pois o último não ganha nada. É um servo inútil (cf. Lc 17,10). O poder deve ser usado não para subir e dominar, mas para descer e servir. Este é o ponto em que Jesus mais insistiu e em que mais deu o seu próprio testemunho (cf. Mc 10,45; Mt 20,28; Jo 13,1-16).
Em seguida, Jesus coloca uma criança no meio deles. Uma pessoa que só pensa em subir e dominar não daria tão grande atenção aos pequenos e às crianças. Mas Jesus inverte tudo! Ele diz: "Quem receber uma destas crianças em meu nome é a mim que recebe. Quem receber a mim recebe aquele que me enviou! Ele se identifica com as crianças. Quem acolhe os pequenos em nome de Jesus acolhe o próprio Deus!
ALARGANDO
Um retrato de Jesus como formador
"Seguir" era um termo que fazia parte dos sitema da época. Era usado para indicar o relacionamento entre o discípulo e o mestre. O relacionamento mestre-discípulo é diferente do relacionamento professor-aluno. Os alunos assistem às aulas do professor sobre uma determinada matéria. Os discípulos "seguem" o mestre e convivem com ele. Foi nesta "convivência" de três anos com Jesus que os discípulos e as discípulas receberam a sua formação.
Não é pelo fato de uma pessoa andar com Jesus que ela já é santa e renovada. No meio dos discípulos, cada vez de novo, a mentalidade antiga levantava a cabeça, pois o "fermanto de Herodes e dos fariseus" - Mc 8,15-, isto é, a ideologia dominante, tinha raízes profundas na vida daquele povo. A conversão que Jesus pede quer atingir a raiz e erradicar o "fermanto''. Já vimos como Jesus combatia a mentalidade antigo de competição e de prestígio - Mc 9,33-37 e a mentalidade fechada de quem se considera dono de tudo - Mc 9,38-40. Eis alguns outros casos desta ajuda fraterna de Jesus aos discípulos.
.: Mentalidade de grupo que se considera superior aos outros
Certa vez, os samaritanos não queriam dar hospedagem a Jesus. Reação dos discípulos: "Que um fogo do céu acabe com esse povo" (Lc 9,54). Achavam que, pelo fato de estarem com Jesus, todos deviam acolhê-los. Pensavam ter Deus do seu lado para defendê-los. Era a mentalidade antiga de "Povo eleito, Povo privilegiado!" Jesus os repreende: ''Vocês não sabem de que espírito estão sendo animados" (Lc 9,55).
.: Mentalidade de quem marginaliza o pequeno
Os discípulos afastavam as crianças. Era a mentalidade da cultura da época em que criança não contava e devia ser disciplinada pelos adultos. Jesus os repreende: ''Deixem vir a mim as crianças!" (Mc 10,14). Ele coloca a criança com professora de adulto: "Quem não receber o Reino como uma criança não pode entrar nele" (Lc 18,17).
.: Mentalidade de quem pensa conforme a opinião de todo mundo
Certo dia, vendo um cego, os discípulos perguntaram: ''Quem pecou, ele ou seus pais, para que nascesse cego?" (Jo 9,2). Como hoje, o poder da opinião pública era muito forte. Fazia todo o mundo pensar de acordo com a cultura dominante. Enquanto se pensa assim não é possível perceber todo o alcance da Boa Nova do Reino. Jesus os ajuda a ter uma visão mais crítica: ''Nem ele, nem os pais dele'' (Jo 9,3). A resposta de Jesus supõe uma leitura diferente da realidade.
Jesus, o Mestre, é o eixo, o centro e o modelo da formação. Pelas suas atitudes, ele é uma amostra do Reino, encarno o amor de Deus e o revela (Mc 6,31; Mt 10,30; Lc 15,11-32). Muitos pequenos gestos refletem este testemunho de vida com que Jesus marcava presença na vida dos discípulos e ds discípulas, preparando-os para a vida e a missão. Era a sua maneira de dar forma humana a experiência que ele mesmo tinha de Deus como Pai:
Envolve-os na missão - Mc 6,7; Lc 9,1-2; 10,1.
Na volta, faz revisão com eles - Lc 10,17-20.
Corrige-os quando erram e querem ser os primeiros - Mc 9,33-35; 10,14-15.
Aguarda o momento oportuno para corrigir - Lc 9,46-48; Mc 10,14-15.
Ajuda-os a discernir - Mc 9,28-29.
Interpela-os quando são  lentos - Mc 4,13; 8,14-21.
Prepara-os para o conflito - Jo 16,33; Mt 10,17-25.
Manda observar a realidade - Mc 8,27-29; Jo 4,35; Mt 16,1-3.
Reflete com eles sobre as questões do momento - Lc 13,1-5.
Confronta-os com as necessidades do povo - Jo 6,5.
Ensina que as necessidades do povo estão acima das prescrições rituais - Mt 12,7.12.
Tem momentos a sós para poder instrui-los - Mc 4,34; 7,17; 9,30-31; 10,10; 13,3.
Sabe escutar, mesmo quando o diálogo é difícil - Jo 4,7-42.
Ajuda-os a aceitar a si mesmos - Lc 22,32.
É exigente e pede para deixar tudo por amor a ele - Mc 10,17-31.
É severo com a hipocrisia - Lc 11,37-53.
Faz mais perguntas que dá respostas - Mc 8,17-21.
É firme e não se deixa desviar do caminho - Mc 8,33; Lc 9,54.
Prepara-os para o conflito e a perseguição - Mt 10,16-25.
Este é um retrato de Jesus como formador. A formação do "seguimento de Jesus" não era, em primeiro lugar, a transmissão de verdades a serem decoradas, mas sim a comunicação da nova experiência de Deus e da vida que irradiava de Jesus para os discípulos e discípulas. A própria comunidade que se formava ao redor de Jesus era  a expressão desta nova experiência. A formação levava as pessoas a terem outros olhos, outras atitudes. Fazia nascer nelas uma nova consciência a respeito da missão e a respeito de si mesmas. Fazia com que fossem colocando os pés do lado dos excluídos. Produzia, aos poucos, a "conversão" como consequência da aceitação da Boa Nova (Mc 1,15). 

Texto extraido do livro ''CAMINHANDO COM JESUS'' - Círculos Bíblicos do Evangelho de Marcos - Coleção A Palavra na Vida 184/185. CEBI Publicações.

terça-feira, 21 de agosto de 2012

Acompanhando nosso caminhar teológico latino-americano

Pouco a pouco nosso continente latino-americano tem ido se posicionando como um interlocutor válido frente aos países do primeiro mundo e tem fortalecido sua identidade cultural e religiosa, deixando de se sentir receptor de tudo o que venha de fora, para oferecer suas próprias riquezas. No campo teológico, isso tem sido claro na chamada teologia latino-americana que, partindo do método ver-julgar-agir, produziu uma teologia capaz de assumir a realidade da pobreza e da exclusão que tem marcado tanto a vida do continente e tem ido além, assumindo os novos desafios que se percebem, tais como a questão ecológica, a questão indígena, a realidade da mulher, a realidade afro-americana, o pluralismo cultural e religioso, etc. Vale a pena recordar a valoração que a 5ª Conferência do Episcopado latino-americano e caribenho deu a tal método pastoral, afirmando ele "que tem colaborado para viver mais intensamente nossa vocação e missão na Igreja, que tem enriquecido o trabalho teológico e pastoral e que, em geral, tem motivado a assumir nossas responsabilidades ante as situações concretas de nosso continente" (DA 19).
É por isso que a celebração, em outubro, do Congresso Continental de Teologia em São Leopoldo, é motivo de gozo e esperança. Com este congresso procura-se comemorar os 50 anos da inauguração do Vaticano II e os 40 anos da publicação do livro Teologia da Libertação. Perspectivas, de Gustavo Gutierrez. Ambos os acontecimentos permitem entender o surgimento e o desenvolvimento da reflexão teológica latino-americana, resultado de um sincero compromisso com a colocação em prática do Vaticano II no continente.
Como preparação ao congresso, foram realizadas, durante 2011, quatro Jornadas teológicas regionais que reuniram os diversos países: na Guatemala (América Central e Caribe), no Chile (Cone Sul e Brasil), no México (Estados Unidos e México) e em Bogotá (países andinos). A partir desses encontros, a iniciativa do congresso pretende ser a de um congresso prospectivo "que mobilize a comunidade teológica para enfrentar os desafios que a emergência do novo paradigma civilizatório, as profundas mudanças culturais, os diversos movimentos sociais e as inovações científicas levantam para a teologia, como serviço às igrejas e à humanidade num mundo globalizado e excludente" (cf. Carta Convocatória do congresso).
Será um congresso católico, com abertura ecumênica, dirigido a teólogos e teólogas de caráter popular, pastoral e acadêmico, e a todos aqueles que se sentem comprometidos com o caminhar social e eclesial. Sua metodologia incluirá conferências, oficinas de participação temática, painéis abertos e cinefóruns. Temas como economia, novos movimentos sociais, sujeitos emergentes, espiritualidade, opção pelos pobres, método teológico, novos paradigmas, migrações, direitos humanos, questões de gênero, entre muitos outros, serão analisados e refletidos a partir da fé, para se avançar num discurso teológico significativo e atual para a realidade que nos desafia.
Assistirão a este congresso muitos teólogos e teólogas da primeira hora, como também muitos outros/as das novas gerações. Em todos existe essa fé inquebrantável no evangelho de Jesus, esse evangelho lido a partir dos pobres, do sofrimento dos últimos, dos excluídos e marginalizados, a partir dos desafios e questionamentos atuais que urgem crer em "outro mundo possível", organizado, não a partir do poder e do ter, mas a partir do serviço e do compartilhar. Será um espaço para renovar a força do pequeno e do frágil e a capacidade de transformação da palavra de Deus com a boa nova de libertação que encerra. Será um congresso no qual a esperança se avivará e o amor estará presente porque, por trás da reflexão teológica, está a vida e o compromisso de muitas pessoas que chegaram até o martírio por defenderem os mais pobres e por comprometerem sua vida com a defesa de seus mais elementares direitos. Esse congresso continental, que desde já vale a pena acompanhar com oração e disposição de fazê-lo possível, afirma, uma vez mais, o Deus da Vida, esse Deus comprometido com os mais pobres e pequenos, o Deus que nos salva a partir deles e com eles.

 Por Instituto Humanitas Unisinos (IHU)

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Plataforma ambiental é lançada para eleições 2012

Documento apresenta os principais pontos da agenda socioambiental que precisam ser abordados pelos políticos e visa apoiar o cidadão na escolha de seus candidatos e também na cobrança de promessas. Nesta quarta-feira (1), a Fundação SOS Mata Atlântica, em parceria com a Frente Parlamentar Ambientalista e a Associação Nacional de Órgãos Municipais de Meio Ambiente (ANAMMA), lançou a Plataforma Ambiental aos Municípios 2012.

O documento apresenta os principais pontos da agenda socioambiental que precisam ser discutidos, respondidos e solucionados pelos próximos dirigentes dos municípios, como o cumprimento efetivo da Lei da Mata Atlântica.

Um dos instrumentos que andam de braços dados com a Plataforma Ambiental é o Plano Municipal da Mata Atlântica, que em 2011 foi produzido em João Pessoa e Maringá, e em 2012 será construído em diversos outros municípios.

"A Plataforma é um importante instrumento de apoio ao cidadão. Os eleitores precisam cobrar de todos os candidatos uma atenção especial a uma agenda socioambiental que atenda as necessidades da população para o desenvolvimento sustentável do Brasil", afirma Mario Mantovani, diretor de Políticas Públicas da SOS Mata Atlântica.

Ela funciona como um instrumento do eleitor, contribuindo no momento da escolha de seu candidato e na hora de cobrar propostas e resultados; e também é útil aos candidatos, que poderão utilizá-la e incorporar os temas em seu Plano de Governo.

De acordo com os idealizadores, qualquer cidadão interessado pode participar dessa iniciativa. "A campanha convoca os eleitores a entregar o documento a seus candidatos, pessoalmente, por email ou correio, e pedir o comprometimento público deles. Hoje a internet possibilita de forma muito mais fácil o acesso de muitas pessoas a uma iniciativa. Mas o mais importante é refletir sobre o seu voto e acompanhar de perto a atuação de seu candidato, caso eleito. Só assim essas ferramentas serão realmente implantadas", finaliza Mantovani.

O documento estará disponível a partir desta quarta-feira no Portal da SOS Mata Atlântica. Nas próximas semanas, a Plataforma Ambiental também será apresentada em capitais brasileiras, como Salvador e Natal.

A Mata Atlântica, que foi  reduzida a 7,9% de sua cobertura original, abrange as áreas mais urbanizadas do país e abriga mais de 112 milhões de habitantes, 62% da população brasileira. A Lei da Mata Atlântica representa um importante passo para a proteção, conservação e utilização da vegetação nativa, bem como dos serviços ambientais e ecossistêmicos prestados pelo Bioma.

A Plataforma

O documento é composto por cinco agendas principais: Água e Saneamento, Incentivos Econômicos e Fiscais, Biodiversidade e Florestas, Mudanças Climáticas e Institucional. São dois documentos principais: uma versão da Plataforma Ambiental para o Brasil e uma específica para os Estados da Mata Atlântica, que possuem os mesmos eixos.

O documento sugere que os candidatos debatam e se posicionem para garantir que o componente ambiental seja levado em consideração em todas as áreas de políticas públicas federais, construindo uma economia para o país, que tenha o socioambiental como premissa. Sobre licenciamento ambiental, a Plataforma sugere que esses processos sejam realizados a partir de critérios técnicos, com qualidade, responsabilidade, transparência e agilidade, e que os casos de empreendimentos com grande potencial de impactos negativos sejam precedidos por uma Avaliação Ambiental Estratégica.

Também são mencionadas a importância de incentivar a redução da demanda de energia oriunda de fontes fósseis (petróleo, gás e carvão), por meio de incentivos e subsídios ao desenvolvimento de energias renováveis, a economia de baixo carbono e a criação e integração das ferrovias e hidrovias no transporte de cargas. Na área de Água e Saneamento, o documento pede a criação de políticas públicas orientadas para captação de água das chuvas e aumento da permeabilidade dos solos em todas as bacias hidrográficas do país e o fortalecimento da organização de cooperativas e/ou associações de catadores.

Nas áreas de Biodiversidade e Florestas e Incentivos Econômicos e Fiscais, a Plataforma aponta a necessidade de garantir a integralidade e proteção dos territórios das atuais unidades de conservação. Hoje, há no Congresso Nacional mais de 60 projetos para diminuir essas áreas. Há destaque ainda para o estabelecimento de medidas voltadas à proteção das espécies da flora e da fauna silvestres, especialmente as ameaçadas de extinção, a implementação da Política Nacional de Biodiversidade e incentivos econômicos e fiscais para proprietários de terra que manterem suas áreas preservadas, assim como a aprovação da Política Nacional de Pagamento por Serviços Ambientais (PSA).

Histórico

O histórico de realização de plataformas ambientais para políticas públicas pela SOS Mata Atlântica é antigo, com a primeira Plataforma Mínima para os Presidenciáveis produzida em 1989.

Em 2010, por exemplo, a Fundação lançou a Plataforma Ambiental para candidatos a cargos executivos e legislativos, oferecendo um cardápio das principais questões ambientais da atualidade.

Em 2008, a Plataforma Socioambiental trouxe 16 temas - como trânsito, áreas verdes, lixo e qualidade do ar - para o cenário da cidade de São Paulo.

Já em 2006, o Voluntariado construiu uma Agenda Voluntária, na forma de um teste que permitia verificar o nível de compromisso dos representantes políticos com a agenda socioambiental.

quinta-feira, 14 de junho de 2012

A semente que cresce sozinha (Mc 4,26-34)

 

A SEMENTE QUE CRESCE SOZINHA (Mc 4,26-34)
É bonito ver como Jesus, cada vez de novo, buscava na vida e nos acontecimentos elementos e imagens que pudessem ajudar o povo a perceber e experimentar a presença do Reino. No evangelho de hoje ele, novamente, conta duas pequenas histórias que acontecem todos os dias na vida de todos nós: "A história da semente que cresce sozinha" e "A história da pequena semente de mostarda que cresce e se torna grande".
A história da semente que cresce sozinha (Mc 4,26-29): O agricultor que planta conhece o processo: semente, fiozinho verde, folha, espiga, grão. Ele não mete a foice antes do tempo. Sabe esperar. Mas não sabe como a terra, a chuva, o sol e a semente têm esta força de fazer crescer uma planta do nada até a fruta. Assim é o Reino de Deus. Tem processo, tem etapas e prazos, tem crescimento. Vai acontecendo. Produz fruto no tempo marcado. Mas ninguém sabe explicar a sua força misteriosa. Ninguém é dono. Só Deus!
A história da pequena semente de mostarda que cresce e se torna grande (Mc 4,30-32): A semente de mostarda é pequena, mas ela cresce e, no fim, os passarinhos vêm para fazer seu ninho nos ramos. Assim é o Reino. Começa bem pequeno, cresce e estende seus ramos para os passarinhos fazerem seus ninhos. Começou com Jesus e uns poucos discípulos e discípulas. Foi perseguido e caluniado, preso e crucificado. Mas cresceu e foi estendendo seus ramos. A parábola deixa uma pergunta no ar que vai ter resposta mais adiante no evangelho: Quem são os passarinhos? O texto sugere que se trata dos pagãos que vão poder entrar na comunidade e ter parte no Reino.
O motivo que levava Jesus a ensinar por meio de parábolas (Mc 4,33-34): Jesus contava muitas parábolas. Tudo tirado da vida do povo! Assim ele ajudava as pessoas a descobrir as coisas de Deus no quotidiano. Tornava o quotidiano transparente. Pois o extraordinário de Deus se esconde nas coisas ordinárias e comuns da vida de cada dia. O povo entendia da vida. Nas parábolas recebia a chave para abri-la e encontrar dentro dela os sinais de Deus.
Texto extraído do livro "Caminhando com Jesus". Série A Palavra na Vida 182/183. Autores: Carlos Mesters e Mercedes Lopes. CEBI Publicações.

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Reinventando a Educação

Muniz Sodré, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é alguém que sabe muito. Mas o singular nele é que, como poucos, pensa sobre o que sabe. Fruto de seu pensar é um livro notável que acaba de sair: Reinventando a educação: diversidade, descolonização  e redes  (Vozes 2012).
Nesse livro procura enfrentar os desafios colocados à pedagogia e à educação que se derivam dos vários tipos de saberes, das novas tecnologias e das transformações processadas pelo capitalismo. Tudo isso a partir de nosso lugar social que é o Hemisfério Sul, um dia colonizado e que está passando por um instigante processo de neodescolonização e de um  enfrentamento com o debilitado neoeurocentrismo hoje devastado pela crise do Euro.
Muniz Sodré analisa as várias correntes da pedagogia e da educação desde a paideia  grega até o mercado mundial da educação que  representa uma crassa concepção da educação utilitarista, ao transformar  a escola numa empresa e numa  praça de mercado a serviço da dominação mundial.
Desmascara os mecanismos de poder econômico e político que se escondem atrás de expressões que estão na boca de todos como “sociedade do conhecimento ou da informação”. Melhor dito, o capitalismo-informacional-cognitivo constitui a nova base da acumulação do capital. Tudo virou capital: capital natural, capital humano, capital cultural, capital intelectual, capital social, capital simbólico, capital religioso…capital e mais capital. Por detrás se oculta uma monocultura do saber, aquele maquínico, expressso pela  “economia do conhecimento”  a serviço do mercado.
Hoje projetou-se um tipo de educação que visa a formação de quadros que prestam “serviços simbólico-analíticos”, quadros dotados de alta capacidade de inventar, identificar problemas e de resolvê-los. Essa educação “distribui conhecimentos da mesma forma que uma fábrica instala componentes na linha de montagem”.
A educação perde destarte seu caráter de formação. Ela cái sob a crítica de Hannah Arendt que dizia: “pode-se continuar a aprender até  o fim da vida sem, no entanto, jamais se educar”. Educar implica aprender sim a conhecer e a fazer, mas sobretudo aprender a ser, a conviver e a cuidar. Comporta construir sentidos de vida, saber lidar com a complexa condition humaine e definir-se face aos rumos da história.
O que agrava todo o processo educativo é a predominância do pensamento único. Os americanos vivem de um mito o do“destino manifesto”. Imaginam que Deus lhes reservou um destino, o de ser  o “novo povo escolhido” para levar ao mundo seu estilo de vida, seu modo de produzir e de consumir ilimitadamente, seu tipo de democracia e seus valores de livre mercado. Em nome desta excepcionalidade, intervem  pelo mundo afora, até com guerras, para garantir sua hegemonia imperial sobre todo o mundo.
A Europa não renunciou ainda a sua arrogância.  A Declaração de Bolonha de 1999 que reuniu 29 ministros da Educação de toda a Europa, afirmava que só ela poderia produzir um conhecimento universal, “capaz de oferecer aos cidadãos as competências necessárias para responder aos desafios do novo milênio”. Antes a imaginada universalidade se fundava nos direitos humanos e no próprio Cristianismo  com sua pretensão de ser a única religião verdadeira. Agora a visão é mais rasteira: só a Europa garante eficácia empresarial, competências, habilidades e destrezas que realizarão a globalização dos negócios. A crise econômico-finaneceira atual está tornando ridícula esta pretensão. A maioria dos países não sabem como sair da crise que criaram. Preferem lançar inteiras sociedades no desemprego e na miséria para salvar o sistema financeiro especulativo, cruel e sem piedade.
Muniz Sodré em seu livro traz para a realidade brasileira estas questões para mostrar com que desafios nossa educação deve se confrontar nos próximos anos. Chegou o momento de  construirmo-nos como povo livre e criativo e não mero eco da voz dos outros. Resgata os nomes de educadores que pensaram uma educação  adequada às nossas virtualidades, como  Joaquim Nabuco, Anísio Teixeira e particularmente Paulo Freire. Darcy Ribeiro falava com entusiasmo da “reinvenção do Brasil” a partir da riqueza da mestiçagem entre todos representantes dos 60 povos que vieram ao nosso pais.
A educação reinventada nos deve ajudar na descolonização e na superação do pensamento único, aprendendo com as diversidades culturais e tirando proveito das redes sociais. Deste esforço poderão nascer entre nós os primeiros brotos de um outro paradigma de civilização que terá como centralidade a vida, a Humanidade e a Terra que alguns também chamam de civilização biocentrada.

Leonardo Boff.

quinta-feira, 17 de maio de 2012

A missão é o testemunho do amor misericordioso

O evangelho de Marcos originalmente terminava em Mc 16,8 com o anúncio do anjo às mulheres, dizendo que Jesus ressuscitara e precedia os discípulos na Galileia. Provavelmente no segundo século, a Igreja, já estruturada, julgou inconveniente a falta das narrativas das aparições do Ressuscitado neste evangelho. Foram, então, acrescentadas três narrativas de aparições, que são resumos das narrativas de aparições dos outros evangelhos, particularmente de Lucas e João. 
Nesta elaboração tardia, tipicamente institucional, a fala atribuída a Jesus, após as três aparições, vai no sentido de afirmar o poder excludente da Igreja, na qual a profissão de fé seguida do batismo já estava consagrada como caminho único e absoluto da salvação. Também ficam afirmados poderes excepcionais conferidos ao crente, como sinais da sua fé, o que contraria a realidade da simplicidade da fé a ser vivida no dia a dia pelos comuns dos mortais.
Com uma visão amadurecida, compreende-se que não cabe à missão impor, condenar ou praticar ações espetaculares. A missão é o testemunho do amor misericordioso, a valorização e o cultivo das manifestações de vida encontradas nas diversificadas comunidades, vendo nelas o sinal da presença de Deus entre os povos, sem exclusões. 
Os últimos versículos fazem alusão à ascensão aos céus, conforme narrada por Lucas em seu evangelho e mais desenvolvida nos Atos dos Apóstolos (primeira leitura), com um sumário de missão. A exaltação do Ressuscitado retirado da terra e glorificado no céu (segunda leitura) foi resultado da influência do messianismo escatológico nas mentes dos discípulos de origem no judaísmo.
Esta visão, que relegou a segundo plano a revelação e a comunicação de Deus na vida e no testemunho de amor do Jesus histórico, influenciou durante séculos a teologia, a espiritualidade e a pastoral da Igreja, remetendo a fé em Jesus a uma recompensa na vida gloriosa futura e celestial. Hoje, resgatando-se as memórias de Jesus de Nazaré, na sua humanidade plena, a fé na sua presença, vivo, nas comunidades nos move ao alegre empenho em construir um mundo novo solidário e fraterno, em que todos se unam em torno do projeto da vida plena para todos, sem restrições.

José Raimundo Oliva

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Na casa de Betânia uma discípula fiel - Mesters e Lopes

SITUANDO
Os capítulos 14, 15 e 16 narram a paixão, morte e ressurreição de Jesus. Ao longo destes três capítulos, "crescem a ruptura e a morte e aparece a vitória sobre a morte". A vitória sobre a morte aparece não só no fim, na ressurreição, mas já está presente, desde o começo, na própria maneira de descrever a paixão e a morte de Jesus. Ela transparece, por exemplo, na calma com que Jesus enfrenta a morte e na maneira como ele encara e interpreta os acontecimentos da sua paixão. A vitória vai crescendo, até manifestar-se plenamente na ressurreição. Jesus não é um derrotado. Derrotados, sim, são os que o matam. A vitória da vida transfigura a morte de Jesus.
Sofrimento, paixão e morte eram o pão de cada dia das comunidades cristãs nos anos 70. Na maneira de descrever o sofrimento, a paixão e a morte de Jesus, Marcos as ajuda a experimentar, desde já, no meio do sofrimento, algo da vitória da vida sobre a morte.

COMENTANDO  
Marcos 14,1-2: O pano de fundo - a conspiração contra Jesus
No fim da sua atividade missionária, chegando em Jerusalém, Jesus é aguardado e vigiado pelos que detêm o poder: sacerdotes, anciãos, escribas, fariseus, herodianos, saduceus e romanos. Eles têm o controle da situação. Não vão permitir que Jesus, um carpinteiro agricultor lá do interior da Galiléia, provoque desordem na capital. A morte de Jesus já estava decidida por eles (Mc 11,18; 12,12). Jesus era um homem condenado. Agora vai realizar-se o que ele mesmo tinha anunciado aos discípulos: "O Filho do Homem vai ser entregue e morto" (Mc 8,31; 9,31; 10,33).
Marcos 14,3-5: A unção de Jesus por uma discípula e a críticas dos discípulos
Uma mulher, cujo nome não é mencionado, unge Jesus com um perfume caríssimo. Num gesto de total gratuidade, ela quebra o frasco. Os discípulos criticam o gesto. Acham que é um desperdício. De fato, 300 denários eram o salário mínimo de 300 dias! O salário de quase um ano inteiro foi gasto de uma só vez.
Marcos 14,6: A resposta de Jesus "Uma boa ação para mim!"
Os discípulos olham o gasto e criticam a mulher. Jesus olha o gesto e defende a mulher: Por que vocês aborrecem esta mulher? Ela praticou uma ação boa para comigo. Ela se antecipou a ungir meu corpo para o enterro. Naquele tempo, uma pessoa condenada à morte de cruz não recebia sepultura e não podia ser ungida, pois ficava pendurada na cruz até que os bichos comessem o cadáver, ou recebia sepultura rasa de indigente. Jesus ia ser condenado à morte de Cruz, consequência do seu compromisso com os pobres e da sua fidelidade ao projeto do Pai. Não ia ter enterro. Por isso, depois de morto, não poderia ser ungido. Sabendo isso, a mulher se antecipa e o unge antes de ser crucificado. Com este gesto, ela mostra que aceita Jesus como Messias, mesmo crucificado! Jesus entende o gesto dela a o aprova. Anteriormente, Pedro teve a reação contrária. Para ele, um crucificado não podia ser o Messias. Por isso, tentou dissuadir Jesus, mas recebeu uma resposta duríssima: "Vai embora, Satanás!" (Mc 8,32).
Marcos 14,7: "Pobres sempre tereis!"
Jesus disse: "Vocês vão ter sempre pobres com vocês. E se quiserem podem fazer o bem a eles". Será que Jesus quis dizer que não devemos preocupar-nos com os pobres, visto que sempre vai haver pobre? Será que a pobreza é um destino imposto por Deus? Como entender esta frase? Naquele tempo, as pessoas conheciam o Antigo Testamento de cor e salteado. Bastava Jesus citar o começa de uma frase do AT e o pessoal já sabia o resto. O começo da frase dizia: "Você vão ter sempre pobres com vocês" (Dt 15,11a). O resto da frase que o pessoal já conhecia e que Jesus quis lembrar dizia: "Por isso, eu ordeno: abra a mão em favor do seu irmão, do seu pobre e do seu indigente, na terra onde você estiver!" (Dt 15,11b). Conforme esta lei, a comunidade devia acolher os pobres e partilhar com eles seus próprios bens. Mas os discípulos, em vez de "abrir a mão em favor do pobre e de partilhar com ele seus próprios bens, queriam fazer caridade com o dinheiro da moça. Queriam vender o perfume dela por 300 denários e usar esse dinheiro para ajudar os pobres. Jesus cita a Lei de Deus que ensinava o contrário. Quem faz campanha com dinheiro da venda do supérfluo não incomoda e não será condenado. Mas aquele que, como Jesus, insiste na obrigação de acolher os pobres e de partilhar com eles seus próprios bens, este incomoda e corre o risco de ser condenado.
Marcos 14,8-9: Em memória dela
Esta discípula anônima é modelo para Pedro e para os outros discípulos que não tinham entendido nada. Ela é modelo para todos nós, "em todo o mundo". Mais tarde, graças à intervenção de José de Arimatéia, Jesus teve o seu enterro.
Marcos 14,10-11: Judas decide trair Jesus
Em contraste total com a mulher que ungiu Jesus, Judas, um dos doze, resolve trair Jesus. Conspira com os inimigos, que lhe prometem dinheiro. Ele continua convivendo, mas apenas com o objetivo de encontrar uma oportunidade para executar o seu projeto de morte.
Marcos 14,12-15: Preparação da Ceia Pascal
Jesus sabe que vai ser traído. Mesmo assim, faz questão de confraternizar com os discípulos nesta Última Ceia. Ele deve ter gastado bastante dinheiro para poder alugar "aquela sala ampla, no andar superior, arrumada com almofadas" (Mc 14,15). Por ser noite de Páscoa, a cidade estava superlotada de romeiros. Era difícil encontrar uma sala para se reunir.
A Ceia Pascal era uma celebração familiar, presidida pelo pai, um leigo, e não pelo sacerdote. Por isso, Jesus, um leigo, manda dois discípulos preparar a sala para a Páscoa. Em seguida, ele preside a celebração junto com os discípulos e as discípulas, sua nova "família" (cf. Mc 3,33-35).

ALARGANDO

Em memória dela  
Em Mc 14,3-9 e Mt 26,6-13 encontramos o relato de uma mulher anônima que ungiu Jesus, preparando-o para a sepultura. O mesmo episódio da unção de Jesus com perfume encontra-se também em Jo 12,1-8. No texto de João, a moça do perfume tem nome. Ela é Maria de Betânia, a irmã de Marta e Lázaro, que durante um banquete, com um gesto profético, ungiu Jesus para o sepultamento (Jo 12,1-8). Ela é a discípula que gostava de ficar sentada aos pés de Jesus, escutando sua palavra (Lc 10,39). Discípula amada (Jo 11,5), que consegue encher a casa (comunidade) com o perfume que fica empapado em seus cabelos soltos e em suas mãos (Jo 12,3). Seu gesto amoroso será repetido por Jesus na celebração da Ceia (Jo 13,2-5). Ele expressa um traço importante da identificação dos discípulos e discípulas de Jesus, que é o serviço amoroso.
Estes três textos de Marcos 14,3-9, Mateus 26,6-13 e João 12,1-8 colocam o episódio da unção com perfume no contexto da Páscoa, quando Jesus já estava, por assim dizer, condenado à morte. "Então, a partir desse dia, resolveram matá-lo. Jesus, por isso, não andava mais em público, entre os judeus" (Jo 11,53-54). Procurado pela polícia, Jesus vivia clandestinamente com sues discípulos, na região próxima ao deserto (Jo 11,54). Foi nesta situação de incerteza e tensão que Marta, Maria e Lázaro convidaram Jesus para um banquete em sua casa de Betânia, seis dias antes da Páscoa. Com o banquete, buscam solidarizar-se com Jesus, assumindo com ele as consequências da sua missão.
O evangelho de Lucas 7,36-50 apresenta também uma mulher anônima, identificada como "uma mulher da cidade, uma pescadora" (Lc 7,37). Ela banha os pés de Jesus com suas lágrimas, enxuga-os com seus cabelos, beija-os e unge com perfume. Este texto não está no contexto da Páscoa, mas se encontra inserido dentro do ministério público de Jesus, quando ainda caminhava com seus discípulos e discípulas pela Galiléia. No centro do episódio narrado por Lucas não está a unção de Jesus para a sepultura, mas o rito de acolhida tão importante para as pessoas que percorriam longas distâncias a pé, pelas estradas poeirentas da Palestina.
No entanto, todos os textos têm algo em comum: a mulher é criticada pelo seu gesto e Jesus a defende diante de todos. No texto que acabamos de citar (Lc 7,36-50), a crítica vem de um fariseu de nome Simão. Seu olhar está acostumado com o julgamento e o controle. Ela nem conseguia fazer o gesto tão comum de acolhida carinhosa que sua cultura pede. Também não era capaz de perceber a Boa Nova de Deus, escondida no gesto da mulher.
Em Lucas 7,36-50, a defesa de Jesus mostra onde e como se manifesta o Dom de Deus. Não são os pecados da mulher que contam. O que vale mesmo é o amor, vivido nos pequenos gestos de gratuidade. "Porque muito amou, tem a minha paz!"
Em Mc 14,3-9; Mt 26,6-13 e Jo 12,1-8, a crítica vem de Judas e dos discípulos, que não aceitam o esbanjamento, o desperdício da moça na sua manifestação de amor a Jesus. Incomodados com o seu gesto, apelam para as necessidades dos pobres. Como vimos, Jesus não retira a importância da partilha com os pobres, mas esclarece que ela entendeu e acolheu a Boa Nova de Deus, expressando isso com o seu gesto. Por isso, "onde quer que venha a ser proclamado o Evangelho, em todo o mundo, se fará também memória dela" (Mc 14,9). 

Extraí do livro Caminhando com Jesus - Círculos Bíblicos de Marcos - II Parte, de Carlos Mesters e Mercedes Lopes.