1. O Estado Moderno
Em uma pesquisa antropológica visando encontrar as condições de
formação do Estado, buscando suas
relações intrínsecas e extrínsecas com a organização humana, assim Lawrence
Krader define
essa instituição política:
"Na organização do Estado, o homem concentra seu poder sobre o
homem em um único cargo oficial. O
monopólio da força física de que goza esse cargo é absoluto. Pode, sem dúvida, canalizar seu poder
mediante delegação específica; nos demais
casos, e desde que o Estado não seja derrubado, esse poder continua a disposição da autoridade central. Em
mãos do Estado o poder adota diversas formas e no uso de suas atribuições pode proibir, matar,
encarcerar, escravizar, multar. Mas as forças do Estado não têm projeções meramente negativas. O Estado se apóia
nas forças integradoras da sociedade: o
amor, a lealdade, a dependência recíproca, a fé religiosa, a tradição e a força do costume.
"Além disso, o Estado é uma autoridade
central (monarca, presidente) com poder sobre uma população que vive dentro de
um território determinado; mas é mais que uma unidade física, territorial ou
legal; o poder político central transforma a unidade nacional, a representação,
a defesa e o controle dessa unidade em uma ideologia. A invasão do território de um Estado supõe uma dupla
ameaça: de um lado a invasão diminui a área geográfica do Estado, e de outro,
diminui o âmbito da autoridade central
e, portanto, o poder de que desfruta. Quando está em perigo a extensão
geográfica de um Estado, se vê igualmente ameaçada a ideologia da unidade do
Estado, o território do Estado e o povo. A lealdade ao Estado se baseia, em
parte, na aceitação de seu poder e na
fé neste poder. A debilidade pode ser uma ameaça para essa fé ou, pelo contrário,
pode ser que a debilidade do poder atraia para ele mais adesão do que nunca.
Mas, em qualquer caso, o povo reage ao Estado e ao seu destino, e não apenas à mera perda de
população, território ou riqueza." 1
Podemos perceber, assim, que a institucionalização do Estado
baseia-se em características básicas do homem enquanto indivíduo, para fazer
dele membro efetivo de uma comunidade. Tal abertura política faz-se de tal
maneira, que o membro de uma comunidade centralizada em um Estado é capaz de
abdicar de si mesmo para defender não apenas as realidades que este Estado
representa (o território, a riqueza ou a população) mas também a própria
abstração da potência de todos centralizada em um único aparato político, o
Estado enquanto tal. Historicamente,
vemos que o Estado, se não esteve sempre presente na organização humana 2, é
uma constante à medida em que cresce o grau de abrangência populacional e
conseqüente complexidade das organizações. Claro que assume as mais variadas
formas, de acordo com as condições de cada tempo e lugar, dos Estados
teocráticos e centralizados da antiguidade oriental aos Estados democráticos e
mesmo totalitários de nossos dias. O fato é que o Estado tal qual conhecemos
hoje, embora guarde profundas semelhanças com instituições políticas antigas, é
fruto de um processo de formação que se inicia no final da Idade Média, com a
dissolução do Estado teocrático feudal. Daremos ênfase aqui, muito mais
conceitual do que histórica, àquele que convencionou-se chamar de Estado
Moderno.
Entretanto, mesmo o Estado moderno apresenta variações, e o que
conhecemos hoje é resultado de um processo de desenvolvimento ao longo dos
séculos. O historiador alemão Werner Naef identifica três grandes tipologias no
processo de desenvolvimento do Estado moderno: a primeira delas seria o Estado
estamental, predominante durante os séculos XV e XVI, responsável pela
concentração dos poderes políticos; a segunda seria caracterizada pelo Estado
monárquico absoluto, que predomina nos séculos XVII e XVIII e representa uma
segunda onda de centralização do poder, agora unicamente nas mãos do monarca; a
terceira grande tipologia do Estado moderno é representada pelo Estado
democrático, que começa a surgir com a Revolução Francesa e consolida-se com a
fixação dos direitos do homem e do cidadão 3.
No aspecto conceitual que nos interessa mais diretamente, o Estado
moderno dominou as preocupações filosóficas durante séculos, sensibilizando
pensadores do calibre de Maquiavel e de Marx, por exemplo. De acordo com
Norberto Bobbio, a filosofia política moderna e suas concepções de Estado e
sociedade podem ser agrupadas em duas grandes vertentes, o modelo
jusnaturalista e o modelo hegelo-marxiano, que se contrapõem um ao outro.
O jusnaturalismo abarca de Hobbes a Rousseau, passando por Locke,
Spinoza e Kant; o modelo hegelo-marxiano, por sua vez, como já acena o próprio
nome, abarca duas perspectivas que, mesmo sendo a segunda uma inversão da
primeira, guardam entre si a identidade estrutural.
O que caracteriza o modelo jusnaturalista é, antes de tudo, o seu
objetivo de desenvolver uma
teoria racional do Estado; se o modelo tradicional de concepção
política que remonta a Aristóteles explicava o Estado como uma construção
histórica, partindo de círculos menores (família, aldeia) para círculos cada
vez mais abrangentes (a Pólis) que culminam no Estado, que é a forma mais
perfeita de organização, os jusnaturalistas vão se dedicar a uma reconstrução
racional, buscando hipóteses de trabalho que permitam a percepção do sentido do
Estado. Assim, ele aparece como a reunião de muitos indivíduos que formam um
indivíduo único, com uma única vontade, expressão da vontade geral:
"O Estado não é como uma família ampliada, mas como um grande
indivíduo, do qual são partes indissociáveis os pequenos indivíduos que lhe dão
vida: basta pensar na figura posta no
frontispício do Leviatã, na qual se vê um homem gigantesco (com a coroa na
cabeça e, nas duas mãos, a espada e o báculo, símbolo dos dois poderes), cujo
corpo é composto de vários homens pequenos. Rousseau expressa o mesmo conceito
ao definir o Estado como o 'eu comum', imagem muito diversa da de 'pai comum'.
Na base desse modelo, portanto, está uma concepção individualista do Estado,
por um lado, e, por outro, uma concepção estatista (que significa racionalizada)
da sociedade. Ou os indivíduos sem Estado, ou o Estado composto apenas de
indivíduos. Entre os indivíduos e o Estado, não há lugar para intermediários. E
também essa é uma extrema simplificação dos termos do problema, à qual conduz
inevitavelmente uma constituição que quer ser racional e, enquanto tal,
sacrifica em nome da unidade as várias
e diferentes instituições produzidas pela irracionalidade da história; mas é
também, ao mesmo tempo, o reflexo do processo de concentração do poder que
marca o desenvolvimento do Estado moderno. Uma vez constituído o Estado, toda
outra forma de associação, incluída a Igreja, para não falar das corporações ou
dos partidos ou da própria família, das sociedades parciais, deixa de ter qualquer valor de ordenamento jurídico
autônomo." 5
O ponto chave do modelo jusnaturalista é o da legitimidade do
poder político do qual é detentor o Estado; se no modelo aristotélico
tradicional a legitimidade vem da natureza (sendo o Estado
resultado do crescimento de esferas sociais menores, desde a
família, a legitimidade é dada pelo pátrio poder: o soberano assume para os
súditos a figura de pai) agora isso já não é mais possível. Se a legitimidade
não é natural, é necessário que se encontre uma forma pela qual ela seja aceita
por aqueles que se submetem. Em outras palavras, é necessário que haja um
consentimento dos súditos para com a autoridade do Estado:
"Isso significa dizer que o governante, ao contrário do pai e do
dono de escravos, necessita que sua própria autoridade obtenha consentimento
para que seja considerada como legítima. Em princípio, um soberano que governa
como um pai, segundo o modelo do Estado
paternalista, ou, pior ainda, como um senhor de escravos segundo o modelo do Estado despótico, não é um
governo legítimo e os súditos
não são obrigados a lhe obedecer." 6
A hipótese racional encontrada pelos filósofos deste modelo está
na noção de pacto ou contrato social 7. A idéia do pacto entre os indivíduos
para constituir o Estado, cada um deles delegando e abdicando de sua própria
autoridade em nome da autoridade única do soberano que é, ele próprio, um
indivíduo, é o centro das teorias contratualistas do jusnaturalismo. O contrato
social marca, fora do tempo e do espaço, a transição do estado de natureza para
o estado civil; o contrato social é o pacto civilizador que faz a ponte
conceitual entre a barbárie e a civilização.
Antes do Estado não há sociedade 8 ; no estado de natureza os
homens não passam de indivíduos, não constituem uma comunidade. Em guerra de
todos contra todos (Hobbes) ou não (Rousseau), no estado de natureza a
articulação social não é possível. Já no estado civil - ou seja, com a
instituição do Estado - os homens passam a viver em comunidade, na qual
adquirem certos direitos, desde que cumpram seus deveres para com os outros e
para com o Estado. Estado de natureza e
estado civil são antagônicos e mutuamente excludentes:
"Entre os dois estados, há uma relação de contraposição: o
estado natural é o estado não político, e o estado político é o estado não
natural. Em outras palavras, o estado político surge como antítese do estado
natural, do qual tem a função de eliminar os defeitos, e o estado natural
ressurge como antítese do estado político, quando este deixa de cumprir a
finalidade para a qual foi instituído. A contraposição entre os dois estados
consiste no fato de serem os elementos constitutivos do primeiro indivíduos
singulares, isolados, não associados, embora associáveis, que atuam de fato
seguindo não a razão (que permanece
oculta ou impotente), mas as paixões, os instintos ou os interesses; o elemento constitutivo do
segundo é a união dos indivíduos isolados e dispersos numa sociedade perpétua e
exclusiva, que é a única a permitir a realização de uma vida conforma a razão. Precisamente porque estado de
natureza e estado civil são concebidos como dois momentos antitéticos, a
passagem de um para outro não ocorre necessariamente pela força das coisas, mas
por meio de uma ou mais
convenções, ou seja, por meio de um ou mais atos voluntários dos
próprios indivíduos interessados em sair do estado de natureza, ou seja, em
viverem conforme a razão." 9
O que fundamenta o Estado é, pois, na visão dos jusnaturalistas, o
desejo dos indivíduos de viverem de acordo com a razão - o que vai de encontro
com sua perspectiva de produzir uma teoria racional do Estado - e não mais de
acordo com os instintos, paixões e interesses puramente individuais e egoístas.
Acontece que a instituição do Estado traz um sério problema: como conciliar o
bem individual da liberdade com a necessária obediência que cada um dos
indivíduos deve prestar ao Estado? 10
Vejamos, brevemente, algumas considerações dos principais
filósofos jusnaturalistas sobre a
questão.
Hobbes: O Estado como segurança
Para Thomas Hobbes, o primeiro grande filósofo contratualista,
essa questão não se coloca: o indivíduo assume uma renúncia quase total11 ,
prestando obediência ao soberano instituído pelo pacto em nome de sua
segurança. Tal abdicação da liberdade deve-se à concepção de Hobbes do estado
de natureza: a guerra total, a luta generalizada (bellum omnium contra omnes),
que dá-se por ser o homem, naturalmente, o lobo do homem (homo homini lupus).
A reflexão do filósofo é bastante curiosa: por natureza, todos os
homens são absolutamente iguais, nada há que os diferencie e, portanto, um
jamais poderá ter poderes sobre os outros12 : dessa igualdade total advém a
desconfiança e, dela, a guerra. A guerra decorre do fato de que um indivíduo
precisa atacar o outro, seja para vencê-lo seja para evitar, de antemão, que
seja por ele atacado. Numa tal situação, a guerra que, em princípio é racional,
torna-se absurda, pois não há vencedor(es) possível(eis). Numa tal guerra não
existem também injustiças, posto que onde não impera a lei não é possível a
definição do que é justo; ainda por outro lado, neste estado de natureza a
propriedade tampouco é possível, pois não há como conseguir e defender coisas
em meio a uma guerra de todos contra todos. Assim, determinadas paixões humanas
fazem com que a razão institua o Estado13.
É no capítulo XVII do Leviatã que Hobbes define a constituição do
Estado através de um pacto
entre os indivíduos no qual eles consentem em abdicar de suas
vontades e liberdade individuais em nome da vontade de um único, que garantirá
a paz através da lei e a segurança de todos os súditos. O homem não é um animal
naturalmente social; a sociedade entre nós é instituída artificialmente e
precisa ser artificial e racionalmente mantida: o pacto precisa ser renovado e
garantido a cada momento, para que haja sociedade. Daí decorre que o poder
político só pode ser mantido através da força. A esse monopólio da força que
faz com que a multidão se una num único indivíduo, que garantirá a segurança de
todos, Hobbes chama Estado.
"A
única maneira de instituir um tal poder comum, capaz de defendê-los das
invasões dos estrangeiros e das injúrias uns dos outros, garantindo-lhes assim
uma segurança suficiente para que, mediante seu próprio labor e graças aos
frutos da terra, possam alimentar-se e viver satisfeitos, é conferir toda sua
força e poder a um homem, ou a uma assembléia de homens, que possa reduzir suas
diversas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade (...) Feito isso,
à multidão assim unida numa só pessoa se
chama Estado, em latim civitas." 14
Assim, o medo da morte e o desejo de posse fazem com que os
indivíduos ajam racionalmente e instituam, através do pacto, um poder político
que os submeterá a todos, mas garantirá o seu direito de posse e sua segurança
física. Abdica-se da liberdade em nome da segurança; troca-se a liberdade pela
vida, enfim.
Locke: o Estado como garantia da propriedade
John Locke também lança mão da hipótese do estado de natureza para
a construção de sua filosofia política. Contrariamente a Hobbes, porém, não vê
nesse estado uma guerra permanente; segundo este filósofo, o fato de os homens
viverem na mais absoluta liberdade não implica em que vivessem sem leis. No
estado de natureza os homens seriam governados pela lei natural da razão, sendo
seu princípio básico a preservação da vida; não se sairia agredindo e matando
os outros indistintamente, portanto, apenas para tirar-lhes as propriedades ou
evitar um possível ataque.
Já no estado de natureza os homens estão aptos a possuir bens; de
acordo com Locke, todo indivíduo já nasce proprietário de seu corpo e de sua
capacidade de trabalho. Tudo aquilo que produzir, retirando ou transformando a
natureza, através de seu próprio trabalho, será de sua propriedade:
"O trabalho de seu corpo e a obra de suas mãos, pode dizer-se, são
propriamente dele. Seja o que for que ele retire do estado que a natureza lhe
forneceu e no qual o deixou, fica-lhe
misturado ao próprio trabalho, juntando-se-lhe algo que lhe pertence, e, por
isso mesmo, tornando-o propriedade dele. Retirando-o do estado comum em que a
natureza o colocou, anexou-lhe por esse trabalho algo que o exclui do direito
comum de outros homens. Desde que o trabalho é propriedade exclusiva do trabalhador,
nenhum outro homem pode ter direito ao que se juntou, pelo menos quando houver
bastante e igualmente de boa qualidade em comum para terceiros." 15
Mas se em seu estado natural os homens, além de gozarem da plena e
absoluta liberdade, podem ainda ter acesso quase ilimitado à propriedade, o que
faz com que eles abandonem esse estado, instituindo a sociedade civil?
Acontece que o produto do trabalho humano e o acesso à propriedade
vão se complexificando
paulatinamente; chega um momento em que há a necessidade de se
arbitrar sobre esse direito, dadas as disputas que começam a surgir. Se todos
são iguais, quem é o verdadeiro proprietário? Se todos são iguais, quem pode
arbitrar essa questão? Se todos são iguais, como pode ser feita a justiça?
Assim, os homens reúnem-se em comunidade com o objetivo de
facilitar a fruição do direito de propriedade que, mesmo possível em estado
natural é incerta e insegura. Afirma o filósofo que "o objetivo grande e
principal, portanto, da união dos homens em comunidade, colocando-se eles sob
governo, é a preservação da propriedade." 16
O que institui a sociedade civil e o Estado para realizar a função
do arbítrio e da defesa do direito à propriedade para todos é, como em Hobbes,
um pacto entre os homens, entre os indivíduos que comporão a assim criada
comunidade. O consentimento dos homens na instituição da comunidade, porém,
difere entre os dois filósofos britânicos: para Hobbes, o contrato é um pacto
de submissão que visa a instaurar uma situação contrária àquela que vigorava no
estado de natureza, preservando a segurança de suas vidas; para Locke, ao
contrário, o contrato apresenta-se como um pacto de consentimento em que os
indivíduos, longe de submeterem-se todos a um poder comum, concordam em
instituir leis que preservem e garantam tudo aquilo que eles já desfrutavam no
estado de natureza. O contrato social é para Locke, a garantia dos direitos
naturais, e não a criação de outros direitos 17.
Para falar sobre as características do contrato que institui a
sociedade política, Locke ampara-se nas características de uma associação
civil, como é o casamento 18. No casamento, dois indivíduos consentem na união
e só por isso ela é possível. Também assim acontece com o Estado: ele só é
possível através do consentimento de todos os indivíduos em sua instauração.
"Sendo
os homens, conforme acima dissemos, por natureza, todos livres, iguais e
independentes, ninguém pode ser expulso de sua propriedade e submetido ao poder
político de outrem sem dar consentimento. A maneira única em virtude da qual
uma pessoa qualquer renuncia à
liberdade natural e se reveste dos laços da sociedade civil consiste em
concordar com outras pessoas em juntar-se e unir-se em comunidade para viverem
com segurança, conforto e paz umas com as outras, gozando garantidamente das
propriedades que tiverem e desfrutando de maior proteção contra quem quer que
não faça parte dela(...) Quando qualquer número de homens consentiu desse modo em constituir uma comunidade ou
governo, ficam, de fato, a ela
incorporados e formam um corpo político no qual a maioria tem o
direito de agir e resolver por
todos." 19
Sem deter-mo-nos aqui nas formas expostas por Locke pelas quais se
dá esse governo da maioria, devemos reiterar que para ele não há, na verdade,
renúncia à liberdade, mas sim a instauração de uma nova modalidade dela, a
liberdade civil, que não se contrapõe à liberdade natural, mas a preserva e a
alarga. Preservando os direitos naturais ao torná-los políticos, o Estado não é
segundo esse filósofo, um "mal necessário", mas a realização dos
direitos humanos através do arbítrio do direito de propriedade, fazendo de
todos felizes possuidores.
Rousseau: o Estado como promotor da "vontade
geral"
O filósofo genebrino Jean-Jacques Rousseau pode ser visto como um
opositor de Hobbes. Enquanto o este concebia o estado natural como guerra e o
estado social como fonte de segurança individual, Rousseau afirmava o estado
natural como fonte da liberdade e da igualdade, sendo essencialmente bom,
enquanto que a sociedade política era a fonte da guerra, posto que instaurava a
desigualdade entre os homens.
Em seu famoso Discurso sobre a origem e os fundamentos da
desigualdade entre os homens (1754/55), esse filósofo identifica o estado de
natureza com a "idade do ouro", quando os homens eram todos livres e
iguais entre si, vivendo em paz e harmonia. A origem da propriedade é também a
origem da desigualdade, pois as diferenças naturais não devem ser levadas em
conta, mas apenas aquela que instaura uma desigualdade de fato, que é a
desigualdade social que aí se origina. A origem da propriedade é também a
origem da sociedade, pois "o verdadeiro fundador da sociedade civil foi o
primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer isto é meu e
encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo." 20
Com a propriedade, vem também o processo de acumulação de bens e,
se uns acumulam, isso
implica em que outros deixem de acumular. A propriedade é fonte
das desigualdades, fonte da escravidão, da ganância e da violência e também é
fonte da civilização. O contrato social que institui o Estado é visto por
Rousseau não como resultado da ação de todos os indivíduos, como o viam Locke e
Hobbes, mas como a ação dos indivíduos ricos coagindo aos mais pobres, na
tentativa de garantir para si as benesses da propriedade 21.
Rousseau antecipa, assim, a visão do Estado como um instrumento de
classe que seria enunciada por Marx no século seguinte, como veremos mais
adiante. Entretanto, o revolucionário filósofo não considera a instituição
política como essencialmente má, defensora de interesses individuais; a
sociedade não é contrária ao estado natural, como queria Hobbes e, portanto, o
Estado poderia ser organizado de forma a preservar os direitos naturais e a
igualdade entre os indivíduos - a que fatalmente chegaria Locke, não fosse sua
defesa intransigente do direito de propriedade.
Encantado com a "idade de ouro" do estado natural, mas
defensor da civilização, Rousseau dedica-se a encontrar as formas de organizar
os indivíduos socialmente de modo que sejam preservados seus direitos e
características naturais, de modo a que o homem não se corrompa
como nessa sociedade essencialmente má, na qual, apesar de
"nascer livre, encontra-se sempre a ferros". Esse processo
civilizador será examinado em Do Contrato Social.
Para que possa ser garantia da igualdade, sem alienar a liberdade
humana, o pacto social deve
abranger a todos os indivíduos. Ninguém pode ficar de fora pois,
nesse caso, estabelecer-se-ia já uma desigualdade que corromperia a sociedade
assim instituída. Diferentemente de Hobbes, o conjunto dos indivíduos não
abdica de sua liberdade em nome de um único indivíduo, ao qual se submete, mas
entrega a si mesmo ao controle de um indivíduo coletivo que é formado pela
união de todos os que pactuam ao firmar o contrato social.
"Enfim, cada um dando-se a todos não se dá a ninguém e, não
existindo um associado sobre o qual não
se adquira o mesmo direito que se lhe cede sobre si mesmo, ganha-se o
equivalente a tudo que se perde, e maior força para conservar o que se tem.
"Se separar-se, pois, do pacto social aquilo que não pertence a sua
essência, ver-se-á que ele se reduz aos seguintes termos: 'Cada um de nós põe
em comum sua pessoa e todo o seu poder sob a direção suprema da vontade geral,
e recebemos, enquanto corpo, cada membro como parte indivisível do todo´."
23
A celebração de tal pacto dá origem a um corpo social, o Estado,
que nada mais é do que a união de todos os indivíduos pactuantes num único
indivíduo social; soberano aqui, não é o monarca como em Hobbes, mas o próprio
Estado enquanto união dos indivíduos. Isto é, o todo é soberano com relação a
cada uma das partes, todas elas iguais entre si. O filósofo prossegue:
"Imediatamente, esse ato de associação produz, em lugar da pessoa
particular de cada contratante, um corpo moral e coletivo, composto de tantos
membros quanto são os votos da
assembléia, e que, por esse mesmo ato, ganha sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua vontade. Essa pessoa
pública, que se forma, desse modo, pela
união de todas as outras, tomava antigamente o nome de cidade e, hoje, o
de república ou de corpo político, o qual é chamado por seus membros de Estado
quando passivo, soberano quando ativo, e potência quando comparado a seus semelhantes." 24
Deste modo, não há, em Rousseau, abdicação da liberdade para a
instituição do Estado, posto que este nada mais é do que a reunião do conjunto
dos indivíduos e deve ser a expressão da vontade geral, isto é, a resultante
das vontades individuais no que diz respeito às questões comuns e coletivas.
Como na perspectiva deste filósofo a soberania não é do governo - os ocupantes
da máquina administrativa - mas do povo enquanto conjunto dos indivíduos
pactuantes, não há nunca submissão individual, pois no Estado se realiza a
igualdade política de cada indivíduo, assim como sua liberdade se realiza ao
obedecer a leis criadas por ele mesmo que não são jamais leis de exceção
impostas por outrem.
O Modelo Hegelo-Marxiano
Se o modelo jusnaturalista tinha em sua essência a oposição estado
natural versus estado civil, este novo modelo, embora rompendo essa dicotomia,
baseia-se numa outra oposição: sociedade civil versus sociedade política 25.
Norberto Bobbio afirma, entretanto, que Hegel deve ser visto como o coroamento
do jusnaturalismo, pois se entendemos esse modelo como a busca da concepção do
Estado-razão, é em Hegel que ele a encontra de forma mais elaborada. Por outro
lado, ele é também o maior crítico do jusnaturalismo, recolocando a questão em
novos termos.
"Com Hegel, o modelo jusnaturalista chegou à sua conclusão. Mas a
filosofia de Hegel é não apenas uma antítese, mas também uma síntese. Tudo o
que a filosofia política do jusnaturalismo criou não é expulso do seu sistema,
mas incluído e superado (o mesmo ocorre com o conjunto dos conceitos herdados
através do modelo aristotélico)." 26
O modelo hegelo-marxiano só se constituirá como verdadeira
antítese ao jusnaturalismo ao incorporar, sobre a estrutura pensada por Hegel,
as considerações levantadas mais tarde por Marx, que retoma a concepção de
Rousseau do Estado como instrumento de dominação para a manutenção da riqueza
de alguns em detrimento de muitos outros, mas tomando essa característica como
essencial e inerente ao conceito mesmo de Estado e não como uma corrupção
contingente do conceito, como para o filósofo genebrino.
A primeira grande diferença de Hegel com os jusnaturalistas diz
respeito à história: enquanto os filósofos que pensavam o Estado como resultado
de um pacto social o estado natural era uma hipótese de trabalho que se
colocava fora da história e para além de qualquer perspectiva histórica, o que
equivale a afirmar que o Estado não tem história ou, pelo menos, que a história
não é fundamental para sua elucidação conceitual, para o filósofo alemão o
Estado só pode ser
compreendido em sua perspectiva histórica, ela é a chave para sua
apreensão. Numa das passagens da Filosofia do Direito, ele critica essa
perspectiva de criticar a realidade através da
concepção de um "Estado Ideal":
"(...) conquistando o poder, estas abstrações produziram por um
lado o espetáculo mais grandioso jamais
visto pela história humana: recomeçar a priori, e pelo pensamento, a
constituição de um grande Estado real, subvertendo tudo o que existe e é dado,
querendo dar-lhe como fundamento um sistema social imaginado; de outra parte,
como não são senão abstrações sem Idéia, engendraram, nesta tentativa, os acontecimentos mais horríveis e os mais
cruéis." 27
Contrariando a Rousseau e aos jusnaturalistas em geral, Hegel
considera não que os indivíduos constituam o Estado, mas que, ao contrário, os
indivíduos só são possíveis no e através do Estado:
"O Estado é 1) primeiramente a sua formação interna, como
desenvolvimento que se refere a si mesmo - o direito interno dos Estados ou a
Constituição. É depois 2) o indivíduo
particular, e por conseguinte em relação com outros indivíduos particulares - o
que dá lugar ao direito externo dos Estados. Mas 3) esses espíritos
particulares são apenas momentos no
desenvolvimento da idéia universal do espírito na sua realidade; e esta é a história
do mundo, ou história universal."28
Percebe-se, pois, que para Hegel a racionalidade está no próprio
Estado, que "é a substância ética consciente de si" 29 e condição da
racionalidade dos indivíduos e não na decisão destes de abdicar do estado de
natureza instituindo a sociedade política. Feitas estas considerações, podemos
passar para a questão central deste modelo que é, como já foi dito, a oposição
sociedade civil versus Estado (ou sociedade política).
Hegel é o primeiro filósofo da política a fazer esta distinção, na
Filosofia do Direito, onde demonstra que uma coisa é a esfera social que trata
dos interesses comunitários porém privados, outra é a esfera social que trata
dos interesses comunitários e comuns a todos os indivíduos. Assim Gildo M.
Brandão define essas duas esferas na perspectiva de Hegel:
"A
sociedade civil (Bürgerliche Gesellschaft) é definida como um sistema de carecimentos, estrutura de
dependências recíprocas onde os indivíduos satisfazem as suas necessidades
através do trabalho, da divisão do trabalho e da troca; e asseguram a defesa de
suas liberdades, propriedades e interesses através da administração da justiça
e das corporações. Trata-se da esfera dos interesses privados, econômico-corporativos e antagônicos entre
si.
"A ela se contrapõe o Estado político, isto é, a esfera dos
interesses públicos e universais, na qual aquelas contradições estão
mediatizadas e superadas. O Estado não é, assim, expressão ou reflexo do
antagonismo social, a própria demonstração
prática de que a contradição é irreconciliável, como dirá mais tarde
Engels, mas é esta divisão superada, a unidade recomposta e reconciliada
consigo mesma. A marca distintiva do Estado é esta unidade, que não é uma
unidade qualquer, mas a unidade
substancial que traz o indivíduo à sua realidade efetiva e corporifica a
mais alta expressão da
liberdade."30
A concepção marxiana desta oposição fundamental aparece de forma
bastante clara no prefácio à obra que seria o germe de O Capital, a
Contribuição à Crítica da Economia Política:
"Minha investigação desembocou no seguinte resultado: relações
jurídicas, tais como formas de Estado,
não podem ser compreendidas nem a partir de si mesmas, nem a partir do assim
chamado desenvolvimento geral do espírito humano, mas, pelo contrário, elas se
enraízam nas relações materiais de vida, cuja totalidade foi resumida por Hegel
sob o nome de 'sociedade civil' (Bürgerliche Gesellschaft), seguindo os
ingleses e franceses do século XVIII; mas que a anatomia da sociedade burguesa
(Bürgerliche Gesellschaft) deve ser procurada na Economia Política (...): na
produção social da própria vida, os homens contraem relações determinadas,
necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção estas que
correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento de suas forças
produtivas materiais. A totalidade destas relações de produção forma a
estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma
superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem formas sociais
determinadas de consciência. O modo de
produção da vida material condiciona o processo em geral de vida social, político e espiritual." 31
Assim, a sociedade civil é anterior e determinante da estrutura do
Estado: a política depende da economia de uma sociedade, na clássica formulação
de Marx. Invertendo a concepção de Hegel, de que o Estado é determinante da
história, Marx afirma que é a história da produção social dos homens, ao
contrário, que determina a estrutura do Estado. Buscando na história da humanidade,
Marx perceberá que em momento algum o Estado foi o representante dos interesses
coletivos, nem tampouco o promotor de uma "vontade geral"; ao
contrário, o Estado foi sempre aquilo que já havia denunciado Rousseau, um
instrumento nas mãos de um determinado grupo social, usado para conquistar e
manter determinados privilégios.
Esta concepção marca o divórcio da sociedade civil com o Estado:
este está acima dela e, embora por ela determinado, tem um grau de
independência que lhe permite fixar regras e leis de modo a perpetuar essa
mesma sociedade civil, mantendo os privilégios e infortúnios desta dada
organização social. A liberdade é, pois, impossível dentro dos limites do
Estado. Contrário a Rousseau e selando o rompimento com o jusnaturlismo, Marx
vê no Estado uma forma necessária apenas para as organizações sociais de
exploração e afirma que apenas a extinção do Estado poderá dar origem à
verdadeira história humana, o reino da liberdade sonhado por Rousseau. A
realização da sociedade humana passa, pois, pela destruição do Estado, e não
por sua instituição, como pensavam os filósofos jusnaturalistas.
Concluindo, o conceito de Estado moderno é resultado de um longo
processo de elaboração
filosófica que acompanha a constituição histórico-social do
Estado-nação, da dissolução do Estado teológico medieval até o pretenso Estado
democrático de nossos dias, passando pelas monarquias absolutas e pelas
revoluções liberais. Da busca de um Estado-razão pelos jusnaturalistas à
concepção marxiana de um Estado como superestrutura da organização econômica da
sociedade, passou-se do conceito de um Estado
"instituidor-instituído" da sociedade para o conceito de um Estado
que não se identifica diretamente com a sociedade, sendo mesmo um reflexo dela.
A relação dialética de mútua influência do Estado com a sociedade
civil é exposta de forma muito simples e clara pelo economista Luis Carlos
Bresser Pereira:
"Compreendido nestes termos, o Estado é, assim, um sistema de poder
organizado que se relaciona dialeticamente com outro sistema de poder difuso
mas efetivo – a sociedade civil. A sociedade civil é, em última análise, a
forma pela qual a classe dominante (ou as classes dominantes) se organiza(m)
fora do Estado para controlá-lo e pô-lo
a seu serviço. A sociedade civil não se confunde portanto com a população ou com o povo. O Estado exerce seu poder
sobre a sociedade civil e sobre o povo. Por outro lado, a sociedade civil é
fonte de poder do Estado e ao mesmo tempo estabelece limites e condicionamentos
para o exercício desse poder." 32
As relações de força no jogo de poder entre Estado e sociedade
civil são melhor delimitadas mais adiante:
"O Estado se democratiza na medida em que a sociedade civil amplia
suas bases e eventualmente inclui nelas os trabalhadores e portanto todo o
povo. É também condição para a democratização do Estado que este fique sob
controle da sociedade civil assim ampliada e não vice-versa. Na realidade
ocorrerá um processo dialético entre a sociedade civil e o Estado, um
controlando o outro e vice-versa. Ao mesmo tempo em que nas sociedades
capitalistas modernas amplia-se a base da sociedade civil, com uma participação crescente, ainda que nitidamente
subordinada, dos trabalhadores, amplia-se também o próprio aparelho do Estado.
E ao ampliar-se o aparelho do Estado,
tende ele a ganhar ou pretender ganhar autonomia em relação à sociedade civil." 33
2. O Estado Capitalista
O Estado moderno, cuja conceituação vimos explanando,
cristaliza-se historicamente no Estado capitalista; não seria exagero afirmar
que a busca iniciada por Maquiavel de descrever a política como ela realmente
é, em oposição às utopias normativas clássicas que remontam à Aristóteles e a
Platão, são esforços no sentido de conceituar esse Estado nascente que se
desenvolve paulatinamente. Boa parte desta busca seria sistematizada por Marx
no século dezenove com suas análises econômicas e políticas do capitalismo.
Como as conceituações filosófico-políticas não são construídas no vazio das abstrações
puras, mas em relação direta com as condições materiais experimentadas,
traçaremos agora algumas das características que o Estado capitalista assume ao
longo da história.
O Estado capitalista, desde suas formas mais arcaicas,
constitui-se a partir e através da derrocada do Estado feudal. Como fruto e
instrumento de uma nova organização sócio-econômica, abandona e mesmo
contrapõe-se a muitas das características daquela estrutura política que ele
vem a substituir; por outro lado, muitas das características dos antigos
sistemas políticos persistem, mascaradas ou não, na estrutura do Estado
capitalista. Essa característica já era percebida por Tocqueville ainda na
primeira metade do século dezenove, quando ele afirmava que as sociedades
democráticas modernas substituíam a sociedade hierárquica antiga, mas que nem
por isso substituíam ou aboliam a hierarquia mesma. Isso pode ser notado, por
exemplo, em O Antigo Regime e a Revolução, quando ele fala da situação das
transformações sociais e políticas na Inglaterra.
"Na Inglaterra, onde à primeira vista se poderia dizer que a antiga
constituição da Europa se encontra
ainda em vigor, ocorre a mesma coisa. Se esquecermos os velhos omes e descartarmos as velhas formas,
perceberemos que desde o século XVII o
sistema feudal fora aí abolido em sua substância: as classes que se
mesclam entre si, uma nobreza apagada,
uma aristocracia aberta, a riqueza transformada em poder, igualdade perante a
lei, igualdade dos encargos, liberdade de imprensa e debates públicos. Todos
princípios novos e desconhecidos pela sociedade da Idade Média. Ora, foram precisamente essas novidades que,
introduzidas lenta e habilmente num
velho corpo, o reanimaram sem o risco de dissolvê-lo e, embora mantendo
suas formas antigas, deram-lhe um novo
vigor. No século XVII, a Inglaterra já é, no seu todo, uma nação moderna, com a
peculiaridade de haver preservado, como se fossem embalsamados, alguns restos da Idade Média." 34
Embora seja um aristocrata que argumenta no sentido de resgatar
determinados privilégios abolidos durante a Revolução em França, a argúcia de
Tocqueville identifica que as mudanças ainda que profundas, rompem com uma
certa estrutura, mas não com a estrutura mesma; isto é, o Estado muda de mãos e
de feições, mas continua Estado e, portanto, atrelado a uma certa estrutura
política que deve privilegiar a dominação, seja ela qual for. Essa mudança no
tipo de dominação - absolutista ou democrática, mas ainda dominação - é melhor
tratada ao longo de uma outra obra do filósofo francês, A Democracia na
América. A citação é um pouco longa, mas necessária para que seja possível
acompanhar a estrutura de sua argumentação:
"Se quisesse imaginar com que traços novos o despotismo poderia
produzir-se no mundo, veria uma
multidão incontável de homens semelhantes e iguais, que se movem sem cessar para alcançarem pequenos e
vulgares prazeres, de que enchem a própria alma. Cada um deles, separado dos
outros, é como que estranho ao destino de todos eles: seus filhos e amigos particulares formam, para ele, toda a
espécie humana; quanto ao restante de
seus concidadãos, está ao lado deles, mas não os vê; toca-os, mas não os sente;
só existe em si mesmo e para si mesmo e, se lhe resta ainda uma família,
pode-se dizer que não tem mais pátria.
"Acima desses homens erige-se um poder imenso e tutelar que se
encarrega sozinho de assegurar-lhes os prazeres e de velar-lhes a sorte. Este
poder é absoluto, minucioso, regular, previdente e suave. Assemelhar-se-ia ao
poder paterno, e, com ele, teria como objetivo preparar os homens para a idade
viril; mas, ao contrário, procura
mantê-los irrevogavelmente na infância; tem prazer em que os cidadãos se regozijem, desde que não pensem em outra
coisa.(...)"
"Após ter assim tomado em suas mãos poderosas cada indivíduo e após
ter-lhes dado a forma que bem quis, o soberano estende os braços sobre toda a
sociedade; cobre-lhe a superfície com
uma rede de pequenas regras complicadas, minuciosas e uniformes, através das quais os espíritos mais originais e as
almas mais vigorosas não conseguiriam
aparecer para sobressair na massa; não dobra as vontades, amolece-as, inclina-as e as dirige; raramente força a
agir, mas opõe-se freqüentemente à ação; não destrói, impede o nascimento; não
tiraniza, atrapalha, comprime, enerva, arrefece, embota, reduz, enfim, cada nação a nada mais ser que uma manada
de animais tímidos e industriosos, cujo pastor é o governo." 35
Tocqueville demonstra, assim, que mesmo o Estado que se coloca
como democrático e igualitário é ainda uma forma de dominação; quiçá uma
dominação ainda mais terrível, por ser mais velada e estar apoiada em
características bastante profundas do ser humano, como a fuga da
responsabilidade: se existe algo ou alguém que nos protege e faz por nós, sem
que tenhamos - aparentemente - que nos submeter, por que não aceitar de bom
grado? É certo que o aristocrata francês está falando contra o princípio da
igualdade, que do seu ponto de vista seria o responsável por essa uniformização
que possibilitaria tal tipo de dominação; atirando num alvo, acerta, porém, em
outro: o Estado moderno "democrático" continua sendo Estado, afastado
da sociedade e instrumento de dominação, o que equivale a dizer que a igualdade
por ele criticada é apenas jurídica, não existindo de fato, pois se há uma
classe de políticos e/ou funcionários que está acima da sociedade, já existe
uma diferença de classes e está sepultada, na prática, qualquer perspectiva de
igualdade. Seria preciso, porém, ainda um par de décadas para que Marx
denunciasse a farsa da igualdade da democracia capitalista, apesar dos
inegáveis avanços políticos que ela representa com relação a formas políticas
anteriores.
É importante salientar, voltando à nossa linha de raciocínio, que
mesmo no Estado Absolutista que, a rigor, é ainda uma formação pré-capitalista,
já estão presentes características que culminariam nessa forma mais
desenvolvida do Estado moderno. Para tocar em dois pontos apenas, mas que são fundamentais, devemos lembrar que
Hobbes, um dos principais teóricos do Absolutismo advogava que a constituição
do Estado devia-se a uma busca de segurança vital e segurança do direito de
propriedade, o que é já um prenúncio dos interesses capitalistas que tomavam
forma aos poucos e ganhavam cada vez mais importância social.
Um segundo ponto, ainda mais fundamental, é que o processo
analisado por Marx no livro primeiro d' O Capital no capítulo denominado A
Chamada Acumulação Primitiva, que seria a base sobre a qual se ergueria o
sistema capitalista de produção, acontece principalmente durante a existência
do Estado Absolutista, principalmente durante o Mercantilismo e a Revolução
Comercial.
A instituição do Estado capitalista traz uma inovação no campo
econômico em relação aos sistemas anteriores: a apropriação do excedente
econômico pela classe dominante não se dá mais através da utilização direta da
força do Estado, através de tributos ou da escravização, mas sim através dos
mecanismos do mercado, via aquela sutil violência expropriadora que Marx
descobriu e a qual chamou mais-valia. É novamente Bresser Pereira quem vem em
nosso auxílio:
"A mais-valia é apropriada pelo capitalista através da troca de
bens e serviços de acordo com seus respectivos valores. Se toda mercadoria tem
seu valor correspondente à quantidade de trabalho socialmente necessário para
produzi-la, e se no capitalismo o trabalho também é uma mercadoria como
qualquer outra, as leis do mercado indicam que se deve pagar pelo trabalho
apenas o correspondente ao custo de sua reprodução social. O preço da
mercadoria força de trabalho, ou seja, o salário, não depende do que o
trabalhador produz, mas de seu custo de reprodução. Logo, basta ao capitalista escolher bens para serem produzidos
que tenham uma quantidade de trabalho neles incorporada maior do que o
respectivo salário para que se produza
uma mais-valia, depois de todos terem sido pagos exatamente de acordo com os respectivos valores. Desta forma, o
capitalista, baseado na propriedade dos
meios de produção e na redução dos trabalhadores à condição de
trabalhadores assalariados, apropria-se
da mais-valia, sob a forma de lucros, juros, aluguéis e, ao mesmo tempo, pode afirmar que todas as
trocas realizadas no mercado foram feitas
exatamente de acordo com os respectivos valores. A violência direta para
apropriação do excedente, com a utilização do poder do Estado, tornava-se desnecessária." 36
É essa peculiaridade intrínseca e particular do sistema capitalista
de produção que permite a gênese de um novo Estado, em substituição ao Estado
Absolutista que havia garantido as condições necessariamente totalitárias que
permitiram a primitiva acumulação de capital sem a qual o capitalismo não teria
como constituir-se em modo de produção socialmente dominante.
O novo Estado que surge é o Liberal, aquele que, em oposição aos
anteriores, não precisaria exercer um forte controle sobre a economia, posto
que o controle era anterior à ação mesma do Estado. Assumindo o poder através
deste Estado Liberal e controlando-o por mais de um século, a burguesia tem
condições de disseminar a ideologia do não-intervencionismo, da queda das
barreiras econômicas e da des-regulamentação, como forma de abrir caminho para
suas atividades crescentes e seu voraz apetite.
Politicamente, o novo Estado pode assumir também uma feição muito
mais democrática, em consonância com seus objetivos econômicos, posto que o
controle da economia e da expropriação do excedente era regulado internamente e
o aparelho repressivo estatal precisaria ser acionado apenas em casos extremos.
Nesse momento do desenvolvimento do Estado Capitalista, a força do Estado
estava tremendamente diminuída, se comparada com a força da sociedade civil,
nos termos aqui já expostos.
O crescimento das empresas, operadoras básicas do mercado, com a
conseqüente formação de monopólios e oligopólios leva a uma crise no poder de
auto-regulamentação do mercado, sendo necessário que o Estado voltasse a
intervir na economia para regular o mercado; aparece então uma nova feição do
Estado Capitalista, marcando uma nova fase, a do Estado Regulador. Bresser
Pereira 37 afirma que países que tiveram retardada sua revolução industrial,
como Japão, Rússia e Alemanha, nem chegaram a conhecer o Estado Liberal,
assumindo a plenitude do Capitalismo com e através do Estado Regulador. Este
alcançaria, porém, mesmo os países tradicionalmente liberais, apesar das
resistências. Nessa nova feição do Estado Capitalista, cresce enormemente o
poder e a atuação do aparato político:
"Quando se fala em capitalismo monopolista do Estado ou
simplesmente capitalismo de Estado, quer-se referir a uma formação social
dominantemente capitalista, mas na qual o Estado adquiriu um papel fundamental,
não apenas no campo político, mas também no campo econômico. O Estado abandonou
o laissez faire para se transformar em órgão regulador e motor da economia.
Através do planejamento econômico, da política econômica e das atividades
empresariais diretas, o Estado, em sua função reguladora, substitui em parte o
mercado, definindo preços, salários e taxas de juros, tributando salários e
ordenados e lucros, estabelecendo prioridades para os investimentos privados,
orientando o consumo através de taxas diferenciadas; em sua função motora
realiza grandes despesas, e torna-se ele próprio empresário, responsável por
ampla parcela da acumulação de capital, na medida em que implanta um poderoso setor produtivo estatal."
38
Esse crescimento do poder e atuação do Estado não implica
necessariamente, porém, numa diminuição do poder da sociedade civil, que
continua forte; constrói-se todavia, novo equilíbrio de forças, diverso daquele
do Estado Liberal.
Essas duas tipologias do Estado Capitalista (Liberal e Regulador),
complementadas por uma terceira que se desenvolveu nos países de economia
dependente - os subdesenvolvidos - e, segundo Pereira, também nos países do
Leste com o malogro da revolução socialista, a do Estado Tecnoburacrático,
caracterizada pela constituição de uma classe administrativa cooptada da
burguesia que assume as funções políticas do Estado e as funções econômicas da
acumulação do capital, constituem um panorama geral da atualidade do Estado
moderno 39.
Assistimos hoje a um certo impasse nestas feições do Estado, com
uma nova onda de discussões em torno de um neo-liberalismo, arauto de não
ingerência estatal na economia, ao qual se contrapõem os defensores da função
regulamentadora do Estado. Independentemente da feição específica que assuma,
porém, seja ela mais ou menos "liberalizante", o Estado capitalista
não se afasta de suas características básicas que, como já alertávamos
juntamente com Tocqueville desde o início, estavam também já presentes nas
organizações político-estatais anteriores.